Comecemos pelas imagens feitas das palavras que dão título a esse texto. Democracia pode ser considerada uma forma política em que o poder aparece horizontalizado e, portanto, partilhado entre os indivíduos de um determinado grupo. Essa forma de organização social e política, ao diluir o poder e, portanto, descentralizá-lo, é também aquela que, associada ao Estado de Direito, limita o poder. Por definição, seu conteúdo carrega, assim, um sentido diametralmente oposto à arbitrariedade, ao abuso e ao autoritarismo.
Esse sentido – que é moderno e só se apreende com o enlace desta forma política à autonomia do Direito – encerra a fórmula mais ou menos bem-sucedida a vigorar no Ocidente desde o fim da Primeira Grande Guerra, com mais fôlego após o Segundo Grande Conflito. É bem verdade que, entre seus (muitos) problemas, o partilhamento do poder também vem carregando um certo esvaziamento de conteúdo.
É o que a atualidade não nos cansa de mostrar. O poder sem rosto de que fala Claude Lefort tem empilhado crises cada vez mais frequentes. E não apenas no Brasil. Essas crises são bem marcadas por polarização e transbordamento das regras do jogo eleitoral, numa clara tentativa de novamente ver verticalizado o poder, mas não apenas. Como democracia e Estado de Direito convivem com outras formas de vida, como o capitalismo e o neoliberalismo, por exemplo, também é verdade que a concentração econômica tem predado as bases dos sistemas democráticos pelo globo. Esse talvez seja – de todos – o desgaste mais significativo. E preocupante.
Por quê? Porque uma vez anabolizada essa espécie de predação econômica, o poder horizontalizado das democracias – plástico que é – daria lugar a um novo tipo de exercício, cada vez mais concentrado nas mãos de elites econômicas. E “isso” – que parece tão mais vivo e cotidiano frente aos melhores sentidos para a democracia atualmente – tem nome: plutocracia.
Bem formatada na ideia de um sistema de governo ou de uma sociedade na qual o poder é concentrado nas mãos de um pequeno grupo de indivíduos extremamente ricos, a plutocracia vê no poder econômico e na influência financeira os principais fatores para a tomada de decisão política e distribuição de recursos.
Sobre isso, pelo assombro dessa aproximação, há farta literatura crítica. Entre tantos autores preocupados com o tema, destaque para o português José Saramago, que sentenciou com radicalidade: “É preciso discutir a democracia, para que possamos reinventá-la. Ou iremos ver o fracasso de nossa época, porque perderemos a esperança de ver um dia respeitado neste infeliz planeta os direitos humanos”.
Essas e outras atuais e contundentes afirmações estão em “Democracia e universidade”, obra publicada pela Fundação José Saramago, em parceria com a Ed. UFPA. Próximo livro a ser discutido no “Café, Direito e Literatura” – organizado pelo “Grupo de Pesquisa Teoria Crítica do Constitucionalismo” (CNPq) – o texto de Saramago conta duas conferências: a primeira, que dá o título ao livro, foi proferida em 2005 na Universidade Complutense de Madri. Já a segunda, “Verdade e ilusão democrática”, e que encerra parte da discussão aqui entabulada, fez parte de exposição em Santiago, no Chile, dois anos antes.
Aberto ao público, o “Café, Direito e Literatura” é um evento transdisciplinar que, desde 2008, reúne pesquisadores, estudantes e interessados em geral, de diversas áreas do conhecimento, que se dedicam a aprofundar estudos na interlocução dessas duas perspectivas distintas – o direito e a literatura. A próxima edição – que também pretende explorar, entre outras, essas mesmas aproximações – será dia 04 de outubro, nas dependências do Maes – Museu de Arte dos do Espírito Santo –, das 15h às 18h.
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