A 21ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro rejeitou recurso manejado por Léo Moura, ex-jogador e ídolo de recentes conquistas do Flamengo, e determinou que ele e sua família desocupem, em 30 dias, a mansão alegadamente adquirida pela família há seis anos. A parte oposta no processo, uma empresa de comércio atacadista, comprovou ter arrematado em leilão o imóvel, localizado no Recreio dos Bandeirantes e comprometido por dívidas do antigo proprietário.
A decisão judicial ainda pode ser reformada — creio haver argumentos. De todo modo, passei o olho no processo e, aparentemente, Léo Moura pensou ter adquirido a propriedade do imóvel devido à assinatura de um contrato de cessão de direitos aquisitivos que acabou não anotado na matrícula. Isso deixou o imóvel “disponível” para servir de garantia a dívidas dos antigos donos; como tais débitos não foram quitados, ocorreu o leilão do bem. Um desgosto que, por ter ocorrido com pessoa de altíssimo poder aquisitivo, reforça a necessidade de antigos alertas.
Um tio meu, também advogado, comentou certa feita que poucas coisas são mais complexas do que explicar a um cliente o que é propriedade. E ele está correto. Diversamente do que ocorre com a posse — ato de controle físico sobre determinado bem —, a propriedade, embora presente na mente das pessoas, não é de fácil verbalização, pois corresponde a um conceito estritamente jurídico. A propriedade não passa de uma ficção jurídica.
Pense num camarada que cultiva determinado pedaço de terra há três gerações, sem notícia de que outro ser humano tenha passado por ali — ou seja, sem conflito algum. Se não houver uma matrícula referente àquele pedaço de terra, individualizando-o como imóvel, esse lavrador não pode se dizer proprietário (peço licença, aqui, aos colegas que sabem do caráter declaratório da usucapião).
Ele é mero possuidor, podendo transacionar tão somente os direitos de controle sobre a área (direitos de posse); ou seja, não pode vender a área para alguém que almeja ser proprietário. Aquele documento particular manchado pelo tempo e passado de mão em mão na família, cuja origem remete ao colono Heinrich — que desmatou o capoeirão e ali se instalou —, nada mais vale do que um atestado de presença na área.
A “culpa” disso é do modelo registral adotado no Brasil para imóveis privados de valor superior a trinta salários-mínimos: o pedaço de terra (solo) precisa conter uma “certidão de nascimento” (matrícula) no cartório (Registro Geral de Imóveis) para existir como uma propriedade.
Se não houver matrícula — e isso, vale frisar, só pode ser certificado pelo cartório da região mediante georreferenciamento —, o bem é apenas um pedaço de terra; existe no mundo dos fatos — afinal, o solo está ali e não vai a lugar algum —, mas não no mundo jurídico (lembra que a propriedade é uma ficção jurídica?).
Então, com o imóvel registrado em cartório e existente como propriedade, todo e qualquer direito ou operação relacionado a ele deve ser inscrito na sua certidão de nascimento (matrícula). Tudo o que for construído sobre o solo também deve ser informado nessa matrícula.
Somente assim há como assegurar que o proprietário atual é fulano e o proprietário anterior é cicrano; ou que a propriedade fiduciária é do banco pois o atual morador não terminou de pagar as parcelas do financiamento; ou que o imóvel está penhorado para pagamento de uma dívida; ou que o imóvel está alugado para terceiros até 2026 e um eventual novo proprietário terá de respeitar a vigência do contrato de locação, por exemplo.
Isso explica, em parte, o poderio — e a responsabilidade, claro — dos cartórios no Brasil. Se um grileiro dos rincões do Pará, em conluio com o tabelião da região, cria uma matrícula e coloca em seu nome uma área de 3.000 hectares, o único modo de deslegitimar essa falcatrua é mover mundos e fundos para anular a matrícula judicialmente, comprovando de forma inconteste o seu caráter apócrifo.
Em suma: compra de imóvel só deve ser feita com a matrícula a tiracolo — o contrário é aperto de mão vendado. Caso não haja matrícula, é preciso saber o porquê e, se possível, buscar criá-la. Aliás, todo negócio envolvendo o imóvel precisa constar da sua matrícula se quiser ser respeitado por terceiros. Outra cilada de comprar sem diligência prévia são as denominadas obrigações propter rem, mas deixemos o assunto para outra oportunidade. Léo Moura, me ligue.
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