Capixaba incentiva mulheres no mercado literário ao comandar selo editorial

Em bate-papo com "HZ", Dani Costa Russo fala sobre o projeto que lança apenas obras publicadas por mulheres e das dificuldades que autoras enfrentam no mercado

Vitória / Rede Gazeta
Publicado em 08/03/2023 às 17h52
Dani Costa Russo é editora do selo Auroras, que lança apenas obras escritas por mulheres

Dani Costa Russo é editora do selo Auroras, que lança apenas obras escritas por mulheres. Crédito: Instagram@danicostarusso

Elas são a maioria entre os leitores, mas, nem sempre, estão na primeira posição quanto o assunto é ver seu nome estampado na capa de um livro.

Segundo a quarta edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo extinto Ibope, em 2015, mulheres representam a maior fatia de quem lê no Brasil. A pesquisa consultou cerca de cinco mil pessoas - entre 5 e mais de 70 anos - e constatou que 52% delas eram mulheres, contra 48% homens. A contrapartida, porém, não é animadora. Nas grandes editoras, dados mostram a predominância de escritores (70,6%), de personagens homens (58,2%), brancos (77,9%) e heterossexuais (85,7%).

Claro que a realidade está mudando. De 2005 a 2014, conforme a mesma pesquisa, o número de autoras aumentou em 3,5% (e deve ter crescido muito mais atualmente), influenciado especialmente por escritoras e editoras independentes, mulheres que lutam para ter vez e voz no mercado editoral e, por que não, no mercado de trabalho. Essa nova realidade precisa ser ecoada aos quatro cantos, especialmente em datas como o Dia Internacional da Mulher.

Quer um exemplo? A jornalista capixaba Dani Costa Russo atua como escritora, idealizadora, curadora e editora do selo Auroras, da Penalux, um espaço voltado à publicação de obras escritas apenas por mulheres.

Em menos de três anos, ela garante a "HZ" que leu centenas de originais e formou, até agora, um catálogo com 35 autoras. Todas foram editadas por Russo, em um processo que envolve mentoria de escrita e de trabalho no mercado editorial. Dani relata que essa batalha pela visibilidade feminina nas letras ainda é árdua.

"Considerando o comportamento do mercado, estamos longe de ocupar o nosso espaço de direito, pois somos bem menos do que o necessário para diminuir a desigualdade de gênero nas publicações", defende, dizendo que a presença da mulher no meio editorial flui com a nítida "permissão" dos homens.

"Permissão implícita, que, se não garantida, nos faz parecer invasoras. Ainda incomodamos, fazemos checagem se há mulheres em eventos e se há ganhadoras de prêmios. Realizamos discussões nas feiras em mesas que discutem nicho e que falam da literatura feita por mulheres... Se fala muito de literatura feminina como algo menor. Ainda se reclama da autoficção das mulheres, insinuando preguiça ou falta de capacidade para histórias inovadoras de ficção. Temos a vida familiar e doméstica minando as possibilidades de carreira. Esperam que estejamos no nosso lugar, que não é o mesmo do deles", enfatiza a capixaba.

Dani Costa Russo, que é autora do romance "Beijos no Chão" e deve lançar em breve "Cama Rainha", também falou sobre temas como o selo Auroras, deu dicas para as mulheres entrarem no mercado editorial, e como concilia o trabalho como escritora e editora. Pegue uma xícara de café e vem com a gente, pois a prosa promete!

Como você vê as mulheres no mercado literário brasileiro? A discrepância com a participação masculina continua muito grande?

Vejo como a mudança necessária para diluir a voz única dos escritores homens, heteros, brancos e da pseudoclasse média do eixo Rio-São Paulo. São as detentoras da escrita que faltavam para criar identidade, para representar elementos nunca dissecados nas obras, para desobstruir uma literatura calcada em um único ângulo, que desfavoreceu por anos a existência de temáticas e contextos "universais" válidos também para as mulheres. Vejo as muitas profissionais do livro inseridas nessa perspectiva, editoras, designers, revisoras, ilustradoras, pois abrange todas do processo, não só as autoras. Considerando o comportamento do mercado, ainda estamos muito longe de ocupar o nosso espaço de direito, pois somos bem menos do que o necessário para diminuir a desigualdade de gênero nas publicações. Fluímos pelo mercado com a nítida "permissão" dos homens. Permissão implícita, que, se não garantida, nos faz parecer grandes invasoras. Ainda se fala de literatura feminina como algo menor, se reclama da autoficção das mulheres, insinuando preguiça ou falta de capacidade para histórias inovadoras de ficção, ou porque os homens decidiram que esgotaram as possibilidades de usar a própria vida num escrito. Temos a vida familiar e doméstica minando as possibilidades de carreira, ou seja, esperam que estejamos em nosso lugar, que não é o mesmo do deles. Ainda nos tratam como se eles, os caras da literatura masculina, viessem de uma linhagem nobre de tradição literária, enquanto nós, das páginas pueris de diários enfadonhos. Tentam nos fazer acreditar que obras de escritoras precisam ser absolutamente geniais, a ponto de romper a barreira do aceitável (até certo ponto), enquanto a dos homens só precisam ser de homens.

"Ainda tentam nos fazer acreditar que obras de escritoras precisam ser absolutamente geniais, a ponto de romper a barreira do aceitável (até certo ponto), enquanto a dos homens só precisam ser de homens"

"Ainda tentam nos fazer acreditar que obras de escritoras precisam ser absolutamente geniais, a ponto de romper a barreira do aceitável (até certo ponto), enquanto a dos homens só precisam ser de homens"

Dani Costa Russo

Esses problemas estruturais de uma sociedade considerada machista e não igualitária esbarra sempre na mesma questão: a mulher enfrenta grandes desafios. Na sua consideração, quais seriam os maiores?

(O) Descrédito da nossa competência seria uma resposta tão boa se não considerarmos que isso é só uma coisinha entre as muitas que enfrentamos. Coisinha não no sentido de ser pequena, mas por não superar, por exemplo, o feminicídio. Nossos desafios mudaram pouco. Não são exatamente todos os mesmos das nossas ancestrais, mas ainda estão na mesma lista. Podemos votar, divorciar, e agora, finalmente, ligar as trompas sem consentimento do cônjuge. Mas os enfrentamentos só se avolumam, pois a violência não diminui, o mercado de trabalho não aposta, os pais continuam abandonando filhos, e a sociedade continua abandonando mães solo. O sistema é todo engendrado para dificultar ao máximo a vida da mulher, numa eterna punição. Quanto mais livre e saudáveis desejamos ser, mais obstáculos temos que transpor. A subestimação no dia a dia, a categorização das nossas supostas fraquezas, a renúncia já desde à infância dos cuidados conosco são, ainda, naturalizadas. Há o apontamento habitual de que não merecemos, não somos capazes, o padrão de tratamento... A única maneira efetiva de guerrilha contra o patriarcado é a união de mulheres. Associações calcadas na sororidade para a manutenção da vida. Se nos organizarmos direitinho, conquistaremos mais, nos protegeremos mais e migraremos para uma era de menos injustiça.

O sistema é todo engendrado para dificultar ao máximo a vida da mulher, numa eterna punição. Quanto mais livres e saudáveis desejamos ser, mais obstáculos temos que transpor. A subestimação no dia a dia, a categorização das nossas supostas fraquezas e a renúncia já desde à infância dos cuidados conosco são, ainda, naturalizadas. Há o apontamento habitual de que não merecemos, não somos capazes, o padrão de tratamento. A única maneira efetiva de guerrilha contra o patriarcado é a união de mulheres

Como se deu o início do selo Auroras, um necessário espaço voltado exclusivamente para publicações de trabalhos femininos?

Foi em 2020, durante a pandemia da Covid-19. Assinei com a editora Penalux uma semana antes de ser instituído o confinamento. A princípio, pensei que a pandemia impediria lançamentos presenciais, mas ainda nem tinha catálogo ou autora. Calculei que quando os primeiros livros saíssem, já não estaríamos mais vivendo restrições. Errei feio, errei rude (risos). Desconhecida como editora, uma iniciante, aliás, me lancei na internet e abri chamado para recebimento de originais. A adesão foi baixa, claro, nem conta no Instagram tinha feito para o selo. Então, um movimento magnífico se configurou: escritoras foram surgindo, simultaneamente em que ia adquirindo confiança como curadora. Editei os primeiros livros como quem pega no colo pela primeira vez um recém-nascido. Um cuidado temeroso. Era uma constante gratidão por aquelas mulheres confiarem suas obras artísticas e intelectuais a mim. O primeiro romance que editei, "Descanso", foi a estreia de Rafaela Riera como autora e, meses após lançado, foi para a final do Prêmio Jabuti 2021, na categoria Romance de Entretenimento. Prêmio não é validação, mas é uma vitrine valiosa e isso foi essencial para projetar o Auroras e atrair mais autoras. Publiquei também a Marília Marcucci, terceiro lugar no Programa de Ação Cultural São Paulo 2021 (Proac). A obra "Vozes de Mulher – Embates e Contrastes" foi feita no decorrer de meses, com o incentivo financeiro desse fomento. Muitas escritoras chegaram, em quatro temporadas de originais, fiz a aquisição de 34 obras. O Auroras logo fará três anos, e seu catálogo ficou mais potente. Diversifiquei os gêneros e fui minuciosa com os temas. Obras de mulheres não são feitas apenas para mulheres. Tenho uma fantasia empolgante protagonizada por uma garota resgatadora de esferas mágicas, em "A Busca das Esferas", de Mariana Baroni; tenho a mitologia da impecável Yasmin Morais, de "Romãs Incandescentes no Inverno"; tenho os contos sedutores e familiares de Janaína Perotto, em "Doce de Jaca", e de "A Casa do Posto", de Larissa Campos; tenho a pancada seca e amorosa de "Flores Mortas do Sertão", de Melissa Vasconcelos; poesia de todo tipo, abaláveis e necessárias; tenho regionalismos, pois minhas autoras estão espalhadas pelo país, não estão só no Sudeste. Confio na paixão que me fez desejar todos os livros para o selo e, consequentemente, para a minha vida e a das pessoas que nos leem.

Dani Costa Russo fala dos desafios da mulher no mercado literário

Dani Costa Russo fala dos desafios da mulher no mercado literário. Crédito: Instagram@danicostarusso

Por falar em lançamentos literários, o que uma mulher precisa fazer para ser uma escritora?

Escrever. Se ela escreve, ela é escritora. Isso basta. As validações mudaram e as redes sociais nos impulsionaram, nos dando condições de assumir o que antes era restrito a poucos. Mas, veja bem, se ela quer publicar com pretensão de seguir uma carreira, de fazer disso o trabalho da vida, ou um dos trabalhos, então uma estratégia precisa ser pensada. Sem estudar a própria escrita não é possível fazer bons livros. Não estou falando da genialidade injusta e subjetiva cobrada pelos homens. Estou falando de ter repertório de ótimas leituras, de prática de escrita para evolução, de trabalhar a própria imagem, mostrando seu valor e credibilidade. Estou falando de prestigiar outras escritoras e conhecer a contemporaneidade. Editoras não querem escritoras que almejam publicar um livro e depois sumir. Isso não faz a engrenagem do mercado funcionar. Também não querem escritoras nada dispostas a divulgar a própria obra. Livro é dinheiro, não é impresso para ficar no estoque e não é feito para lustrar o ego de ninguém. Ser uma escritora de carreira exige se aliar a boas pessoas, estudar muito, negociar valores, enquanto se abre à edição, escrever com paixão, impulso, mas também com planejamento e, sobretudo, ler o Brasil, ler o que nos cerca.

Falando um pouco de você: jornalista de redação que migrou para o mercado editorial. Essa mudança deve ter sido recheada de percalços...

Migrei da redação de notícias, onde atuava como jornalista, para o mercado de livros quando me apaixonei por edição. Já vivia há dez anos em São Paulo (está radicada na capital paulista há 13), sempre trabalhando com jornalismo. Em 2016, publiquei de forma independente "Beijos no Chão", escrito em Vitória anos antes, e rejeitado por todas as editoras que tentei. Não compreendia nada do funcionamento de publicações e não sabia que mulheres eram preteridas e menos ainda os motivos das negativas. Ainda não sabia que os homens mantinham entre eles o poder da publicação, que as narrativas precisavam ser majoritariamente masculinas, mesmo em histórias com personagens femininas. Quando compreendi a exclusão em massa das mulheres na literatura do país e do mundo, me pus determinada a publicar. Assim, meu romance foi lançado. Antes, tive que editá-lo. A experiência me deixou impactada com a total falta de informação de como se faz livros. Quis aprender, fazer parte. Fiz transição de carreira em 2019, deixei o jornalismo e estudei edição por quase um ano. Em 2020, a editora Penalux me convidou a criar um selo que só publicasse obras escritas por mulheres. Alinhamos as expectativas e garanti autonomia de edição. Confiaram nas minhas ideias, no meu método de ensinar enquanto edito. Confiaram no meu ativismo, na minha bandeira insistente de que as escritoras precisam se profissionalizar para edificar carreira, precisam conhecer os caminhos e sair da ingenuidade do desconhecimento. Com o selo, formo mais e mais escritoras para um mercado que começa a mudar. Arrombo portas e ensino a arrombar. Estou na linha de frente do que chamo "Revolução Literária", um movimento lento, mas inexorável, de transformação da literatura brasileira, com a atuação, enfim, das ditas "minorias", entre elas as mulheres.

Com o Auroras, formo mais e mais escritoras para um mercado que começa a mudar. Arrombo portas e ensino a arrombar. Estou na linha de frente do que chamo "Revolução Literária", um movimento lento, mas inexorável, de transformação da literatura brasileira, com a atuação, enfim, das ditas "minorias" entre elas, as mulheres.

Você anunciou o lançamento do seu próximo livro, "Cama Rainha", comentando nas redes sociais o retorno como escritora, mas é cada vez mais atuante como editora. Como conciliar essas suas duas versões?

Ser editora e ser escritora é todo dia um dilema. Quero abraçar e amar as duas versões com toda a entrega. Antes, não conseguia, agora acho que encontrei um meio termo. Eu não vivo só disso, também dou aulas, mentorias, presto uma infinidade de serviços relacionados a livros, e até jornalismo, equilibrar os muitos pratos exige as renúncias do dia, decisões de uso de tempo que não podem ser equivocadas. Lanço em breve Cama Rainha, um livro sem gênero porque assim eu o quis. Diria ser poesia, mas não totalmente. É um livro de anotações, cuja narradora sou eu, Dani Costa Russo. Não é autoficção, é biográfico. São relatos da minha vida, tirados dos meus moleskines, a respeito de violência sofrida, medos variados, resgates, trabalho com a escrita, amor à beira da insanidade. Quis brincar e debochar. Hoje posso publicar um livro, e num selo comandado por mim. Sou a minha editora, sou uma Dani em diálogo com a outra Dani. Tenho essas duas dentro de mim se avaliando, se elogiando, se criticando, se mantendo lúcidas, prontas para mostrar que o moleskine de uma mulher não é um diário bobo com registros amenos, desinteressantes. É um tratado de sobrevivência. Tem escape da morte, superação de abandono, criação solitária de filhos, pavores inesquecíveis. Cama Rainha será lançado com um clipe feito pela Flor Filmes, uma produtora de mulheres cineastas, e terá ainda mais elementos íntimos da minha vida, fazendo do meu real a ficção, e da minha ficção, um jeito de superar o real, pois o mote são as fases do luto da separação. Sofri horrores, escrevi, me aguentei. A exposição pessoal de uma escritora é um experimento audacioso, corre-se o risco de parecer banal. Assistir Annie Ernaux, Prêmio Nobel de Literatura 2022, na Feira Literária de Parati (FLIP), no Rio de Janeiro, logo após ser premiada, me deixou apaixonada pela ideia de que posso fazer o que eu quiser. O íntimo é meu e só eu decido se o revelo ou não. No ano que vem fica pronto meu próximo romance, estou trabalhando nele. Ficção total, texto epistolar, a denúncia da escrita contemporânea. Esse livro eu não posso nem vou editar, vou atrás de editora. Vou pegar o caminho do pedido de aceitação. Essa é a parte mais difícil de ser escritora.

Por falar em lançamentos, o Auroras terá mais chamado para originais em 2023?

Planejei ainda neste semestre lançar chamado para prosas de horror com, no máximo, 170 páginas. Quando a data chegar, anuncio no Instagram. Até lá, as escritoras podem pegar no perfil do Auroras dicas de como se envia um original, além de me ver falando de alguns funcionamentos do mercado editorial. É essencial a mulher que escreve adquirir conhecimento e entender como se dão os processos. Não só para ficarem mais espertas, mas para compreenderem que se hoje temos uma desigualdade abissal nas publicações, com homens publicando muito mais que mulheres, é porque o sistema assim o programou. Ter consciência disso alivia a sensação de incapacidade, de inaptidão instaurada pelo patriarcado para nos fazer desistir antes mesmo de tentar.

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