De Poze a L7nnon, entenda como o trap assimilou 'cultura de favela' no Rio

Com o selo Mainstreet, do rapper Orochi, gênero absorveu elementos do funk e se transformou para refletir a cidade

  • LUCAS BRÊDA
Publicado em 27/05/2022 às 08h21
Orochi

Orochi. Crédito: JP Maia/Divulgação

Orochi, um dos artistas mais ouvidos do Brasil nos últimos anos, segura uma copo de whisky enquanto se prepara para subir ao palco na Sapucaí, templo do samba carioca. O Carnaval fora de época havia acabado de acontecer no Rio de Janeiro, mas o rapper não faz exatamente o tipo de música mais identificado com a festa de rua.

"A Mainstreet está tentando vender a imagem do Rio de Janeiro adaptada através do trap", ele diz, citando o selo que criou ao lado do sócio Lang, casa de gente como Poze do Rodo, Borges, Bielzin, Chefin e Oruam, entre outros. "Essa identidade está sendo moldada, para a galera cada vez mais entender a estética do Rio. E a gente vem tentando identificar essa estética. O Rio tem artistas originais, sem desmerecer outros estados. São Paulo tem muita gente, o Matuê está criando uma cena em Fortaleza, mas o Rio está fazendo o trap ser a maior potência do bagulho."

Orochi subiu ao palco, em evento todo dedicado aos artistas do selo, cantando "Lobo", música sintética e viajada, que antes de chegar à Sapucaí já era parte da trilha sonora da cidade, dos sons automotivos às caixinhas de som que são febre nas praias. Além de alavancar a carreira do próprio Orochi, a faixa teve uma importância extra --marcou a transição do MC Poze do Rodo, expoente do funk em 150 BPM, que estava no auge do sucesso em 2019, para o trap, espelhando uma movimentação do próprio Rio.

"Ele já tinha feito 'Vida Louca'", diz Orochi, citando a música lançada no ano passado, um trap composto por Bielzin e gravado por Poze do Rodo, que se tornou uma das mais ouvidas do país. "Quando a gente ouviu aquilo, vimos que ele teria um futuro. Chamei ele para o estúdio. Gravamos 'Lobo' e depois 'Assault (Rio)' no mesmo dia, vimos como ele soava na nossa estética. Falei a ele e ao Bielzin, 'se em um dia a gente fez essas duas, imagina se a for do mesmo bonde e fizer várias?'"

MC Poze do Rodo

MC Poze do Rodo. Crédito: Instagram/ Poze do Rodo

Desde então, Poze do Rodo vem emplacando hits e sendo peça fundamental na fusão orgânica entre o trap e o funk, a estética importada dos Estados Unidos, onde surgiu o subgênero do rap, e a vivência carioca. Nas palavras de Orochi, essa transição "foi uma parada que fez nêgo entender muito mais o trap no Brasil".

Esse era um dos desafios da Mainstreet, diz Lang, um dos fundadores do selo. "Na real, o trap no Brasil veio como um movimento mais elitizado, de uma galera que escutava música lá de fora. O que a gente tentou fazer, com toda uma galera que veio junto, foi tentar trazer ele para a cultura de favela. É uma camada social que no Rio sempre ouviu muito funk. Em determinado momento, você tem claramente uma diminuição da importância do funk no Rio --que ainda é o maior gênero musical, é exportado. Mas existe uma ascensão do trap."

Nesse processo, houve uma assimilação do Auto-Tune, ferramenta de edição de voz fundamental no trap. "Para quem já tem uma noção maior de tom, ele te dá um empurrãozinho. Eu consigo alcançar as notas sem Auto-Tune, mas uso por estética. Combina com o que eu quero passar, sonoramente falando. Mas foi difícil acostumar o público. Não fomos os primeiros, mas alguns dos primeiros a usar. Eu sabia que seria difícil", diz Orochi.

Junto à ascensão do trap, veio também uma volta do protagonismo aos MCs, já que no funk em 150 BPM os DJs --como Rennan da Penha, Iasmin Turbininha, Polyvox e FP do Trem Bala-- ganharam o centro do palco.

"Essa cultura do 150 BPM veio junto com as montagens de DJs, que faziam a vida do MC ficar um pouco complicada. Eram montagens com várias músicas, uns trinta segundos de cada, numa velocidade muito rápida. Fortaleceu os DJs mas enfraqueceu o MC, com exceção de alguns, como o Kevin o Chris. Nesse vácuo, quando entrou a pandemia, sem festa, sem baile, era mais difícil o funk estourar uma música."

Mas os artistas da Mainstreet não foram os primeiros e nem os únicos a fazer trap na cidade. Por volta da metade da década passada, coletivos como Uclã e Pirâmide Perdida, de onde saíram nomes como BK e Luccas Carlos, entre outros, já experimentavam com o gênero. Em 2018, o produtor WC no Beat lançou um álbum conceitual fundindo trap com funk, "18k", com participações de gente como o MC Cabelinho, que começou no funk e hoje se converteu ao trap, além do próprio Orochi.

Em 2019, Borges lançou "AK do Flamengo", destacando o chamado "trap de cria", com letras explícitas que retratavam o cotidiano das favelas, incluindo festas e curtição, o tráfico de drogas e a violência. Mas até o ano passado, o trap do Rio ainda não tinha tido os números no streaming e a penetração que tem hoje, pulverizado no voz de artistas como MD Chefe, TZ da Coronel, Filipe Ret, Xamã, Maneirinho e L7nnon, além dos nomes já citados.

L7nnon, que recentemente se tornou o rapper mais ouvido do país, representa bem o caminho que o estilo vem tomando em sua cidade de origem. Sua voz está ao mesmo tempo em "Desenrola Bate Joga de Ladin", hit de funk em parceria com o experiente grupo Os Hawaianos, e em "Freio da Blazer", um típico trap arrastado e viajado do Rio.

Ele tentava uma carreira como skatista quando enveredou para o rap e entrou para o selo Papatunes, do renomado produtor Papatinho. "A minha ideia era dar o papo reto. Achava que não tinha que fazer música de amor, era mais ser underground, falar da rua, de vida", ele diz.

Sua estética foi desenvolvida em parceria com o produtor. "Eu era muito de escrever sem batida. Aí ele mostrava o beat e eu tentava encaixar. Outras vezes ele falava, 'tenta encaixar o flow de tal jeito nessa parte'. O principal foi essa conexão que a gente teve desde o início."

"Freio da Blazer" destaca dois temas recorrentes nesse trap --a ostentação e o tratamento racista que a polícia dá a quem ostenta. "O freio da [Chevrolet] Blazer [carro usado pela PM do Rio] é a cara de quem a polícia enquadra, o estereótipo --a tua cor, o jeito que você se veste. É você ter que ficar afirmando que aquilo é seu, que você conquistou com o suor do seu trabalho. É você ser visto como uma pessoa que não pode ter aquilo, um carro, uma roupa, uma joia maneira, e ser sempre taxado como um cara criminal. É um grito das pessoas que passam por esse constrangimento diário."

É um assunto que está em "A Cara do Crime (Nós Incomoda)", música que reúne os rappers da Mainstreet e, de tanto sucesso, já rendeu uma segunda parte, e ainda vai ter uma terceira. São faixas que reúnem todos os elementos do trap do Rio, da célula rítmica e os refrãos do funk, mas graves e batidas de trap e vozes com Auto-Tune.

O cantor L7NNON

O cantor L7NNON. Crédito: Reprodução Instagram @l7nnon

Na música, Cabelinho e Poze do Rodo cantam sobre vivências cotidianas do Rio, como ir ao jogo do Flamengo no Maracanã e depois ao baile funk, e celebram a autoestima e o estilo através das roupas e tênis caros. Até a maneira de se ostentar tem um jeito próprio no trap do Rio, num universo estético que inclui camisas da Lacoste ou de time de futebol, o perfume 212, roupas da Nike --representada nas letras pela metáfora da vírgula, referência ao símbolo da marca--, o corte de cabelo "americano" e o "bigodinho fininho". "Cheirando a 212, no meu pano estou 'virgulado'", como canta Chefin em "212".

"É o jeito que a gente vive a vida aqui, às vezes mais malandreado", diz L7nnon. Para Lang, é algo que reflete a cultura da favela. "É o cara que ficou rico, conheceu o que existe --Dior, Gucci e tal--, mas ele vai cantar sobre a vivência dele. Na favela, Lacoste é a parada, Nike é a parada, o perfume é 212. É ostentação, mas é mais acessível e popular aqui no Rio. Faz parte da absorção dessa cultura."

Em "Corte Americano", hit de Filipe Ret, L7nnon canta que a "blusa do Flamengo não é camisa, é manto", colocando o uniforme de time de futebol numa posição de ostentação. "É você pegar a cultura que é sua desde sempre e valorizar essa cultura", diz Lang.

"É não largar as raízes. Não é porque eu sou milionário que eu vou gostar do que aquela elite branca e rica gosta. São coisas que às vezes não tem um valor material enorme, mas têm um valor cultural e emocional --como a camisa do Flamengo, que na comunidade é o manto sagrado."

"Se eu fosse explicar o trap para um gringo, eu ia chamar ele para ficar um mês comigo", diz Bielzin. "Por que a gente só escreve o que a gente vive. É a pura realidade, o que a gente vê e o que a gente deseja também. O trap é o funk, é a mesma cultura, é a rapaziada da favela."

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