Repórter / aline.almeida@redegazeta.com.br
Publicado em 15 de abril de 2025 às 18:00
Por muitos anos, Conceição Evaristo atravessou o Brasil com suas palavras afiadas pela vida e embebidas de memória. Agora, retorna ao Espírito Santo como a primeira mulher negra a receber o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Aos 78 anos, a escritora, professora e pesquisadora mineira é reverenciada por uma instituição federal. Receber este título, em suas próprias palavras, significa que "a sociedade, tardiamente, começa a mudar”.
Conceição foi homenageada nesta quarta-feira (10) no Teatro Universitário da Ufes, em Vitória, em uma cerimônia pública e gratuita, que também marca um gesto simbólico: o reconhecimento da intelectualidade negra como potência da cultura brasileira.
“Eu fico muito feliz pela honraria, mas ser a primeira também nos coloca uma certa responsabilidade. O interessante não é ser a primeira. O interessante é abrir perspectiva”, disse Conceição, sob aplausos calorosos.
Em entrevista exclusiva para HZ, a escritora lembra que a primeira vez que esteve no Espírito Santo tinha cerca de 20 anos e trabalhava como empregada doméstica durante as férias escolares, quando ainda estudava o curso Normal, para ser professora.
“Vim acompanhar minha patroa em Marataízes e na casa não havia banheiro para as empregadas, ela não nos deixava usar o banheiro dela. Íamos à praia fazer nossas necessidades”, declarou.
Quase seis décadas depois, ela retorna como autora consagrada, traduzida em diversos países, com textos que atravessam vidas e despertam consciências. “Hoje celebro minha existência, minha potência criadora, meus saberes e a existência dos que vieram antes de mim”, afirmou.
Conceição também falou de sua relação com o estado e com figuras capixabas importantes para ela: “Já comi a moqueca, conheci o Departamento de Letras da Ufes, e as paneleiras. Também tem o ícone capixaba que é a minha amiga Elisa Lucinda, e Edileuza Penha, uma cineasta maravilhosa. Ainda não consegui turistar, mas pretendo fazer isso em breve”.
A autora de obras como Ponciá Vicêncio, Becos da Memória e Insubmissas Lágrimas de Mulheres acredita que a literatura tem o poder de tocar onde a razão não alcança: “A literatura não é um documento histórico, mas ela convoca. Quem lê Carolina Maria de Jesus não fica neutro ao pensar a fome ou a solidão daquela mulher”.
Para Conceição, a escrita é um gesto de luta e permanência. “Tenho dito para nós, mulheres negras, que escrever e publicar é um ato político. Nós não somos conhecidas de uma hora para outra. É preciso persistência, mas também paciência. A primeira vez que publiquei tinha 44 anos. Hoje tenho 78. Nada acontece de forma instantânea”.
A concessão do título de Doutora Honoris Causa é uma das mais altas homenagens oferecidas por universidades, atribuída a personalidades que se destacam por contribuições significativas à cultura, à ciência, às artes e à sociedade. Na Ufes, a honraria não tem periodicidade fixa: é concedida mediante indicação formal e aprovação nos conselhos superiores da instituição.
Ao receber a homenagem, Conceição fez questão de ressaltar que espera que a universidade continue esse movimento. “Que esse reconhecimento seja modelo para a própria instituição procurar outras pessoas negras a quem esse título possa ser conferido”.
Com uma trajetória marcada pela valorização da ancestralidade e da experiência coletiva, a escritora sonha com um futuro onde todos possam escrever, ser lidos e valorizados: “Todo esse caldeirão que forma a nação brasileira, com nossas diferenças e semelhanças, explode na literatura. Vejo um futuro onde a arte literária diz dessa multiplicidade”, completou.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta