O grupo de samba Fundo de Quintal, formado dentro do bloco Cacique de Ramos. Crédito: Acervo/Centro de Memória do Cacique de Ramos
"Você sabe da história que o Sereno fez o tantã para parar de carregar peso? A preguiça fez o homem inventar a roda", diz Junior Itaguay, que toca banjo e canta no Fundo de Quintal, um dos grupos mais importantes da história do Brasil, que celebra os seus 45 anos com um disco ao vivo a ser gravado neste domingo (21), no Rio de Janeiro.
Além do tantã criado por Sereno, o grupo introduziu na roda de samba o repique de mão, inventado por Ubirany, morto no ano passado, e o banjo com braço de cavaquinho. "O samba era surdo, tamborim, violão, entre outras coisas. Não tinha repique, nem pandeiro e tantã."
Desde os anos 1960, com a criação do bloco Cacique de Ramos --que este ano completou 60 anos--, Sereno, Ubirany e o mestre do pandeiro Bira Presidente, entre outros, estabeleceram a estética da roda de samba que até hoje está em voga. A história envolve um tanto de preguiça, mas não só.
"Meu pai fazia aqueles almoços de domingo, com roda de samba. Eu pegava tudo quanto era coisa pra fazer um ritmo. Era balde, bacia", diz Sereno, o inventor do tantã, instrumento que substituiu o surdo como responsável pelos graves nas rodas de samba do Cacique de Ramos
Tudo mudou quando ele observou com mais atenção os conjuntos de bolero como o Trio Irakitan. "Eles usavam um tambor do tamanho de um balde. Fiquei admirando. Falei, 'aquilo entra no samba'. Foi quando peguei uma lata de 20 kg, meu pai pegou papel de cimento, molhou, botou na lata, amarrou e botou no sol. Aí tinha violão, cavaquinho, pandeiro e eu com aquela lata de cimento fazendo o ritmo."
A versão rudimentar foi logo substituída por outra, agora de madeira. "Pedi para fazer um compensado daquele instrumento de lata. Foi a armação toda de compensado e o aro, também de madeira, para botar o couro. O nome de tantã fui eu quem dei. Tinha rebolo, timba, conga, mas quis fazer um tantã. Era justamente a batida que eu fazia."
Fundo de Quintal no programa 'Ensaio', da TV Cultura, em 1994. Crédito: TV Cultura/Divulgação
O ímpeto criativo também pegou Ubirany, que transformou um repinique de escola de samba no repique de mão. Além de tocar com as mãos, em vez de baquetas, ele tirou a pele debaixo do tambor, rebaixou o aro e instalou abafadores. Com som mais agudo, o repique adicionou nas rodas as repicadas, que são batidas rápidas com a ponta dos dedos.
"Demos um chega pra lá no surdo. Não tinha caixa, nem instrumentos estridentes. Na minha onda, o Ubirany criou o repique de mão e o Almir Guineto tirou o braço do banjo e botou o do cavaquinho. Aquilo não prestou", diz Sereno.
A entrada do banjo de quatro cordas remete a Guineto, ex-integrante do Fundo de Quintal, que morreu em 2017. Itaguay, que hoje toca o instrumento no grupo, explica a origem. "A premissa é parar de carregar peso --assim como o tantã é menor que o surdo. Em vez de carregar um cavaquinho e uma caixa amplificada, com o banjo você alcança o volume desejado."
O banjo conhecido da música country americana tem cinco cordas, mas no samba se popularizou com apenas quatro, como o cavaquinho. "O banjo é africano, muita gente não sabe, mas ele não vem do country. Ele foi adaptado na América do Norte e na Central, ainda com cinco cordas", diz Itaguay.
Almir Guineto pôs o braço de cavaquinho no banjo quando estava no Originais do Samba, com Mussum. Mas o instrumento só foi aproveitado no Cacique de Ramos.
A batucada do Cacique abriu espaço para que Bira Presidente criasse um jeito de se tocar pandeiro completamente diferente da levada dura do choro. "Meu pai era da boemia, amigo de Pixinguinha, João da Baiana. Ele me levava pra casa dessa turma. Era fartura de comida, cerveja, cachaça, vinho, uísque. Ficava sentado com o cara do pandeiro e me deram um de presente. Simplesmente aconteceu, entrou no meu estado de espírito."
Bira, hoje com 84 anos, e irmão de Ubirany, levou o clima desses encontros para o Cacique, bloco que fundou e do qual é presidente até hoje. Instituição do Carnaval carioca, o Cacique desfila até hoje em três dias no centro, com mais de 300 pessoas na bateria.
"Três famílias que gostavam da boemia --a minha, a do Sereno e a do Aymoré Espírito Santo-- decidiram fazer um bloquinho ali em Ramos", diz Bira."A maioria foi casando, cuidando da vida e eu gostei do negócio e continuei."
O nome do bloco, assim como as indumentárias indígenas, vem da mãe de Bira e Ubirany, Conceição Nascimento. Ela se tornou mãe de santo depois de conhecer Mãe Menininha do Gantois na Bahia e sugeriu que eles se inspirassem nas origens indígenas dos nomes de seus filhos --Ubirany, Ubirajara (o Bira) e Ubiracy. "Ela falou, 'bota esse nome porque é espiritual'."
Não demorou até que o bloco ganhasse a famosa sede na rua Uranus, em Olaria, onde fica a famosa tamarineira cantada na música "Doce Refúgio". Às quartas, sambistas se reuniam com jogadores de futebol e amigos para uma pelada, seguida por uma refeição --geralmente churrasco, feijoada ou vatapá-- e para cantar e tocar até o dia amanhecer.
Foi neste ambiente que Beth Carvalho conheceu a batucada que mudaria o samba. "Ela chegou no Cacique, viu a roda, aquele ritmo. Não tinha parafernália, era na unha, como chamavam. Quem tinha gogó cantava. Ela cantou, brincou, se acabou", diz Sereno.
Além de Bira, Ubirany, Sereno e Guineto, passavam pelas rodas músicos como Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Sombrinha, Luiz Carlos da Vila, Neoci, João Nogueira e Zeca Pagodinho, entre muitos outros. Beth achou tudo amador, mas decidiu levá-los ao estúdio.
"De Pé no Chão", o disco da cantora que imortalizou a roda do Cacique, foi um sucesso, puxado pelo hit "Vou Festejar", até hoje um dos sambas mais conhecidos do Brasil. Em 1980, o Fundo de Quintal lançou o disco "Samba é no Fundo de Quintal" e, ao longo da década, popularizou este estilo particular de se fazer samba, que ganhou novas nuances.
Se o pagode dos anos 1990, de grupos como o Raça Negra, introduziu instrumentos elétricos, como baixo e teclados, ele também bebeu da fonte do Fundo de Quintal --por exemplo, no uso da bateria.
Ademir Batera entrou no Fundo de Quintal em 1991. "Para mim, foi uma mudança radical. Eu tocava com a Elza Soares, e ela gostava do pedal a dois. Hoje, nem sei tocar mais isso, porque tive que mudar para poder segurar a onda boa da rapaziada do Fundo, e não embolar com tantã, repique e pandeiro", ele diz.
"Quando cheguei, teve uma resistência forte nesse sentido. Os caras começaram a bater, né? 'Porra, bateria no samba não tem nada a ver.' Aí o Arlindo [Cruz] diz 'não, vamos segurar a onda. Está legal para caramba. O importante é a gente se sentir bem.' Fomos levando, levando e hoje você vê que todo grupo tem bateria, né? Antigamente não tinha. Acho que tive uma participação nessa história, uma pequena parcela, mas tive."
Hoje, o grupo que estabeleceu as bases do samba contemporâneo celebra o legado com novos membros e um fôlego que parece infinito. Marcio Alexandre, mais jovem integrante, fez carreira em escolas de samba e hoje canta e toca cavaquinho no Fundo de Quintal. Ele se sente na seleção brasileira. "É como um jogador que vê os craques jogando, fazendo gol, e daqui a pouco está convocado para aquela seleção. É muito louco."
"De onde saíram os maiores nomes da música popular brasileira até hoje? Qual é o bloco conhecido no mundo todo? É Zeca, Jorge Aragão, Emílio Santiago, Neguinho da Beija-Flor, Luiz Carlos da Vila, João Nogueira, Beth Carvalho. É muita gente", celebra Bira.
"Ditaram um modelo de sucesso. Posso falar porque entrei depois", diz Junior Itaguay. "Ditaram o jeito mais prático e mais gostoso de se ouvir samba. Não adianta. Deu aquela pausa, tem que ter aquela virada de repique bem cheia, bonita. Aquela levada de tantã séria e sucinta, que não precisa de mais nada. Às vezes o tantã do Sereno já faz um Carnaval com a batucada do Bira. É maravilhoso."
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