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José Falero sabe do que fala em crônicas que interpelam o leitor

'Mas em que Mundo Tu Vive?' traz estranhamento brechtiano para abordar temas como a violência entre classes

Publicado em 26 de outubro de 2021 às 15:35

O escritor José Falero
O escritor José Falero Crédito: Foto/Tomas Edson Silveira

A crônica, tão enraizada no espaço, é também um gênero de escuta do tempo. Entre nós, nasceu carioca, sob o som ensurdecedor das picaretas que abriam a avenida Central, desejando flagrar o espírito contraditório de uma cidade que se queria francesinha e civilizada, mas na prática se baseava na hierarquização feroz que desmentia o espírito republicano.

"Mas em que Mundo Tu Vive?", segundo livro de José Falero publicado pela Todavia, não foge à regra. Mostra que cronista é quem consegue captar o seu tempo no turbilhão contraditório da vida vivida. Transitando entre os diferentes mundos de Porto Alegre, o autor deixa ver na singularidade da experiência rasgos de uma história coletiva.

A pergunta sustentada pelo título, em tom de perplexidade e irritação, dá o tom intrépido do conjunto que fascina ao revelar, por dentro, perrengues bem reais da numa sociedade que insiste em ser surda a si mesma.

Falero descreve o "corre" da vida urbana precarizada e sabe exatamente do que fala. As crônicas às vezes interpelam a leitora ou o leitor, explicitando a provável distância que nos separa do narrador, e têm a vantagem de não aderir ao tom demagógico. Antes, as interpelações funcionam como um tipo de estranhamento brechtiano, recurso que cai bem na embocadura do seu texto.

O livro arrebata sobretudo pelo tratamento dado às questões atuais, especialmente o problema do trabalho numa época que alguns teóricos dirão que se caracteriza pela neoescravidão e o pós-emprego, ou seja, excesso de trabalho, sub-remuneração e perda de direitos.

A crônica que batiza o volume abre a seção "Assalariados", que ironicamente nos introduz no dia a dia da economia dos bicos, por vezes tarefas kafkianas e sem sentido, mas das quais dependem para viver o narrador e seus amigos, e que no Brasil já representam mais de 40% dos trabalhadores ativos.

Ao flagrar a violência entre as classes na concretude de pequenos gestos, Falero faz lembrar relatos de Carolina de Jesus. Os leitores desta não esquecem a história dos sanduíches de rato ou as descrições das alucinações produzidas pela fome.

Capa do livro 'Mas em que Mundo Tu Vive?', de José Falero, publicado pela editora Todavia
Capa do livro 'Mas em que Mundo Tu Vive?', de José Falero, publicado pela editora Todavia Crédito: Divulgação

Com Falero sentimos o peso das 300 sacolas de cimento que chegam no fim de um dia de espera, vergam o corpo e bambeiam as pernas. Revela, e em geral com algum humor, a dinâmica tensa e difícil entre a submissão tática e a indignação que não pode ser declarada, desfiando em filigranas a silenciosa luta de classes que não diz seu nome. Fica ecoando em nós o ar categórico da vizinha que, biblicamente, nega duas vezes um copo d'água aos trabalhadores de uma demolição.

"Mas em que Mundo Tu Vive?" mostra um escritor interessado em jogar com o documentalismo sem se render à força retórica dos fatos ou ao valor agregado do "lugar de fala". Assim parece dar continuidade ao projeto criativo do romance "Os Supridores", em que narrava, até a saturação expressiva, os cálculos labirínticos de dois empreendedores pobres tentando melhorar de vida.

A vocação para a sátira social faz do livro um modo especialmente contundente de percorrer as metamorfoses do trabalho e da sua desumanização numa cultura que bebe ainda no mito da democracia racial e na farsa da meritocracia.

Mergulhando no particular concreto e tirando proveito dos falares populares, gírias e sotaques, Falero produz uma expressão importante do desafio cotidiano enfrentado pela maior parte da população. Sua literatura tem ainda a vantagem de querer ser lida tanto por quem se identifica com as agruras do narrador quanto por aqueles que vivem em "outro mundo".

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