O escritor José Falero. Crédito: Foto/Tomas Edson Silveira
A crônica, tão enraizada no espaço, é também um gênero de escuta do tempo. Entre nós, nasceu carioca, sob o som ensurdecedor das picaretas que abriam a avenida Central, desejando flagrar o espírito contraditório de uma cidade que se queria francesinha e civilizada, mas na prática se baseava na hierarquização feroz que desmentia o espírito republicano.
"Mas em que Mundo Tu Vive?", segundo livro de José Falero publicado pela Todavia, não foge à regra. Mostra que cronista é quem consegue captar o seu tempo no turbilhão contraditório da vida vivida. Transitando entre os diferentes mundos de Porto Alegre, o autor deixa ver na singularidade da experiência rasgos de uma história coletiva.
A pergunta sustentada pelo título, em tom de perplexidade e irritação, dá o tom intrépido do conjunto que fascina ao revelar, por dentro, perrengues bem reais da numa sociedade que insiste em ser surda a si mesma.
Falero descreve o "corre" da vida urbana precarizada e sabe exatamente do que fala. As crônicas às vezes interpelam a leitora ou o leitor, explicitando a provável distância que nos separa do narrador, e têm a vantagem de não aderir ao tom demagógico. Antes, as interpelações funcionam como um tipo de estranhamento brechtiano, recurso que cai bem na embocadura do seu texto.
O livro arrebata sobretudo pelo tratamento dado às questões atuais, especialmente o problema do trabalho numa época que alguns teóricos dirão que se caracteriza pela neoescravidão e o pós-emprego, ou seja, excesso de trabalho, sub-remuneração e perda de direitos.
A crônica que batiza o volume abre a seção "Assalariados", que ironicamente nos introduz no dia a dia da economia dos bicos, por vezes tarefas kafkianas e sem sentido, mas das quais dependem para viver o narrador e seus amigos, e que no Brasil já representam mais de 40% dos trabalhadores ativos.
Ao flagrar a violência entre as classes na concretude de pequenos gestos, Falero faz lembrar relatos de Carolina de Jesus. Os leitores desta não esquecem a história dos sanduíches de rato ou as descrições das alucinações produzidas pela fome.
Capa do livro 'Mas em que Mundo Tu Vive?', de José Falero, publicado pela editora Todavia. Crédito: Divulgação
Com Falero sentimos o peso das 300 sacolas de cimento que chegam no fim de um dia de espera, vergam o corpo e bambeiam as pernas. Revela, e em geral com algum humor, a dinâmica tensa e difícil entre a submissão tática e a indignação que não pode ser declarada, desfiando em filigranas a silenciosa luta de classes que não diz seu nome. Fica ecoando em nós o ar categórico da vizinha que, biblicamente, nega duas vezes um copo d'água aos trabalhadores de uma demolição.
"Mas em que Mundo Tu Vive?" mostra um escritor interessado em jogar com o documentalismo sem se render à força retórica dos fatos ou ao valor agregado do "lugar de fala". Assim parece dar continuidade ao projeto criativo do romance "Os Supridores", em que narrava, até a saturação expressiva, os cálculos labirínticos de dois empreendedores pobres tentando melhorar de vida.
A vocação para a sátira social faz do livro um modo especialmente contundente de percorrer as metamorfoses do trabalho e da sua desumanização numa cultura que bebe ainda no mito da democracia racial e na farsa da meritocracia.
Mergulhando no particular concreto e tirando proveito dos falares populares, gírias e sotaques, Falero produz uma expressão importante do desafio cotidiano enfrentado pela maior parte da população. Sua literatura tem ainda a vantagem de querer ser lida tanto por quem se identifica com as agruras do narrador quanto por aqueles que vivem em "outro mundo".
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