Livro relata escândalo do "seguros dos motéis" no ES na década de 1970

Além da polêmica capixaba, obra de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo destaca a ligação - e o apoio financeiro - que esses empreendimentos voltados ao "pecado da carne" tinham dos governos da ditadura militar

Vitória / Rede Gazeta
Publicado em 12/11/2021 às 12h36
Capa do livro

Capa do livro "Os Motéis e o Poder", de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo. Crédito: Reprodução

Além de apontar que a ditadura militar financiou a construção e a consolidação dos motéis, espaço para a prática de sexo livre, a partir da década de 1960, indo contra o discurso moralista de tradição e bons costumes, o livro "Os Motéis e o Poder: Da Perseguição pelos Agentes de Segurança ao Patrocínio pela Ditadura Militar" - disponível para compra na Amazon - também desvenda uma história de "alcova", se assim podemos dizer, relacionada ao Espírito Santo. Foi no Estado, em 1979, que deu início ao chamado golpe do "seguro dos motéis", um polêmico sistema de corrupção que envolveu esferas do poder político do Estado.

A trama - digna de um conto "rodriguiano", que mistura política e suborno - é descrita em detalhes na obra dos jornalistas Ciça GuedesMurilo Fiuza de Melo. De acordo com a obra, Newton Leitão, ex-general e um dos braços direitos de Golbery do Couto e Silva no famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI), criou, no final da década de 1970, uma espécie de "seguro contra acidentes" para os clientes frequentadores de motéis. Com o tal "investimento", os estabelecimentos ficariam "protegidos" contra fiscalizações por parte do Governo Federal, seja da vigilância sanitária ou mesmo na checagem do registro de hóspedes. 

O livro descreve que a maracutaia começou em setembro de 1979 e contou com o apoio do presidente da extinta Empresa Capixaba de Turismo (Emcatur) na época, Petronilho Baptista Filho, que ficaria com 30% da arrecadação do tal seguro. Além de Petronilho, estava envolvido no esquema - de acordo com a obra literária - o superintendente da seguradora Atlântica Boa Vista na época, Edgar Candido do Vale.  

O problema? Os proprietários de motéis no Espírito Santo avaliaram que nenhum cliente iria querer assinar um documento que atestava sua presença em um lugar de encontros sexuais, especialmente se estivesse cometendo adultério ou algum outro fetiche sexual, descreve a obra.

O escândalo estourou quando Petronilho tentou convencer os empresários capixabas a aceitarem o documento, sob pena de terem seus estabelecimentos "cercados diariamente por camburões da PM".

Segundo o livro, para o azar de Baptista Filho, entre os moteleiros capixabas estava Aurora Rezende, prima do então governador do Espírito Santo, Eurico Rezende. Não demorou para a empresária delatar a história, fazendo com que Eurico abrisse uma sindicância, suspendesse o "negócio" e exonerasse Petronilho. 

"O insucesso em terras capixabas fez com que Newton Leitão tentasse levar o esquema para o Rio de Janeiro. No outro estado, contou com a ajuda de um juiz de direito do Espírito Santo, Gilberto Chaves de Azevedo, que estava suspenso de suas funções por uma série de irregularidades", explicou uma das autoras de "Os Motéis e o Poder", Ciça Guedes, detalhando que, para escrever a publicação, foram necessários seis anos de pesquisa, tendo como base jornais e revistas da época e documentos históricos do Supremo Tribunal Federal, Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Embratur, Arquivo Público do Rio de Janeiro e documentos da Fundação Getúlio Vargas, entre outros, além de uma vasta gama de entrevistados. 

DESEJO PROIBIDO

Babados à parte, ao devorar cada uma das 325 páginas de "Os Motéis e o Poder", conseguimos a resposta para um questionamento: por qual motivo presidentes como Artur da Costa e Silva, que impôs o AI-5, e Emílio Garrastazu Médici, conhecido pela prática da tortura de seus opositores e que perseguiram por anos artistas, jovens e mulheres, instaurando as piores fases da censura na história recente do Brasil, estimularam - com apoio financeiro e incentivos fiscais - a construção de motéis?

É bizarro, se não contraditório, pensar que pode haver um "casamento" entre defensores dos valores familiares contra o comunismo - medo difundido na sociedade até os dias atuais - e um espaço onde as pessoas, principalmente da classe média, estavam liberadas para toda e qualquer prática sexual, sem nenhum tipo de fiscalização por parte da ditadura.

Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo são autores do livro

Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo são autores do livro "Os Motéis e o Poder". Crédito: Tasso Marcelo

A resposta, Ciça tem de cor. "O governo identificou o turismo como uma das indústrias com potencial para alavancar o crescimento econômico e decidiu criar a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur) em 1966, desenhando um plano para dotar o país de infraestrutura hoteleira", explica.

De acordo com "Os Motéis e o Poder", a ideia também era incentivar a indústria automobilística, que se instalara no início da gestão de Juscelino Kubitschek. Os militares incluíram o modelo norte-americano do “motorist’s hotel” (de onde se origina a palavra motel) entre os meios de hospedagem que receberiam financiamentos e incentivos. "Somente em 1983, quase no fim da ditadura, que esse incentivo foi retirado da indústria moteleira, que deixaram de se enquadrar no quesito 'meios de hospedagem'".

INDÚSTRIA DO SEXO

Com o apoio dos militares, o Brasil viveu o chamado "boom dos motéis". De acordo com o Anuário Estatístico da Embratur, o país, em 1979, contava com 352 estabelecimentos voltados para o "pecado da carne" distribuídos em 165 municípios de várias regiões. 

"O governo conservador não contava, porém, com a Revolução Sexual, a luta pelos direitos da mulher e a pílula anticoncepcional. A mulher se sentiu livre para buscar o prazer e os motéis foram um local ideal para isso. Se no espaço público os generais proibiam quase tudo, nesses estabelecimentos tudo era permitido, seja adultério, ménage à trois, orgias, homossexualidade, consumo de drogas ilícitas e de pornografia, desde que não saíssem para 'fora do quarto', sempre com discrição", detalha Guedes.

Para ter ideia da grande ligação dos militares com os motéis, o general João Batista Figueiredo, chefe do Gabinete Militar de Médici, que se tornaria, 12 anos depois, presidente da república, participou da inauguração do luxuoso Motel Dunas, ainda em operação na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.

"Essa 'liberdade' sofreu um baque em 1975, após a repercussão na imprensa de um crime ocorrido no Vip’s, o mais famoso e caro motel do Rio. A atriz (e apresentadora do 'Fantástico') Leila Cravo foi encontrada nua, agredida e inconsciente no asfalto da Avenida Niemeyer. Ela sobreviveu, houve uma investigação (a polícia, na época, constatou tratar-se de tentativa de suicídio), mas esse pacto de silêncio entre governo e motéis foi rompido", relembra.

Reprodução da capa da revista

Reprodução da capa da revista Amiga. Crédito: Reprodução

Não encontramos apenas tragédias nas páginas de "Os Motéis e o Poder". Há histórias no mínimo curiosas, como o caso de uma senhora carioca que, morta aos 80 anos em 2014, pediu, em seu leito de morte, que suas cinzas fossem jogadas no motel Vip's, alegando ter passado ali seus momentos mais felizes. 

"Também contamos a história do padre (supostamente boliviano) Luiz Mário Villarroel Alarcon, que, entre os anos 1960 e 1970, com o apoio da polícia, liderava grupos de fiéis da Igreja Católica Apostólica Brasileira contra os motéis de Belo Horizonte. Eles iam à noite para a frente dos estabelecimentos e, segurando velas, protestavam contra as 'casas de satanás', na intenção de constranger pessoas que entravam nos locais", relata Ciça Guedes.

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Em tempo: Alarcon, de "tão puritano", foi condenado por pedofilia e, mesmo depois de cumprir pena, foi acusado de cometer o mesmo crime em outras ocasiões. Por duas vezes, o Superior Tribunal Federal (STF) tentou expulsá-lo do país, mas nenhuma outra nação o aceitou. O padre "perseguidor de motéis" morreu (esquecido) em 8 de julho de 1998. 

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