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Macbeth berra declarações de Bolsonaro que parecem de Shakespeare em peça

Segundo tomo da trilogia do horror de Christiane Jatahy mistura clássico sobre o tirano à voz do líder indígena Davi Kopenawa

Publicado em 6 de dezembro de 2021 às 16:50

Cena da peça Macbeth2020
Cena da peça Macbeth2020 Crédito: Anax Almiranda/Divulgação

No saguão de entrada do Pfauenbühne da Schauspielhaus, em Zurique, o xamã yanomami Davi Kopenawa aguardava o início do espetáculo "Before the Sky Falls", ou antes que o céu caia. A presença do indígena ali há cerca de um mês criava um tipo de estranhamento e antagonizava com todo o frisson da estreia naquele que é um dos mais prestigiados teatros suíços da atualidade.

O choque entre esses mundos é também o fundamento do novo espetáculo dirigido pela encenadora brasileira Christiane Jatahy, com produção da Schauspielhaus. Segunda parte de sua trilogia do horror, ele mistura "Macbeth", o clássico de William Shakespeare, com a voz de Davi Kopenawa, registrada no livro "A Queda do Céu" pelo antropólogo francês Bruce Albert.

"Macbeth" já habita o imaginário de Jatahy há algum tempo. Em 2015, ela criou a videoinstalação "A Floresta que Anda", inspirada também na tragédia. Lá, contudo, a figura de Macbeth não tinha um rosto definido. Segundo a diretora, era uma presença sem forma fixa, um risco de tirania que pairava no ar, "quase como se fosse um presságio de tudo isso que estava para acontecer".

Seis anos depois, é como se tivéssemos ido mais adiante na tragédia. "A questão já não é mais uma iminência de alguma coisa", diz Jatahy. Segundo ela, a relação com a peça agora se aprofunda e se intensifica. Se antes a ameaça estava no ar, "agora ela está na carne, ela está no sangue".

O tirano Macbeth, então, se torna o centro do espetáculo. O ambiente é moderno. Tudo se passa num salão luxuoso, de decoração aristocrática, onde um grupo de homens de terno bebe champanhe e comemora o sucesso de alguma operação financeira bilionária.

Segundo a diretora, a camarilha de homens ébrios de poder é uma imagem de um capitalismo destrutivo, um "banquete sem fim que esses homens vivem, querendo devorar tudo o que têm à volta". Macbeth personifica ainda as formas extremadas do sistema, o "fascismo associado ao sistema capitalista", que vai surgindo de maneira silenciosa e imperceptível até se corporificar de forma monstruosa, diante de nossos olhos.

O Macbeth da peça tem, portanto, uma série de equivalentes contemporâneos. O mais emblemático é Jair Bolsonaro. Declarações do presidente são inseridas no discurso do regicida escocês e parecem ter sido escritas por Shakespeare. É o caso do momento em que Macbeth tem um rompante e grita "tenho somente três alternativas, ser preso, morto ou a vitória". A frase é de Bolsonaro, mas cabe espantosamente no andamento do texto de Shakespeare e na boca do tirano.

Mas Macbeth não está sozinho na peça. Ele aparece cercado por uma gangue de homens, que manipulam sua insanidade segundo os seus interesses. Personificam, assim, um sistema cujo coração bate bem perto da Schauspielhaus em Zurique, onde estreou o espetáculo.

Jatahy termina "Antes que o Céu Caia" lembrando que um dos maiores compradores de ouro do Brasil é a Suíça —o país importa, de fato, quase um quinto de todo o metal que deixa o Brasil e responde pelo refino de quase 70% do ouro que circula pelo mundo.

De acordo com um relatório de julho deste ano do Instituto Escolhas, do total das exportações brasileiras do metal é estimado que 17% sejam de minério extraído ilegalmente, sobretudo da região amazônica —ocasionando largas faixas de desmatamento, poluição das águas e conflitos violentos com indígenas.

O espetáculo faz lembrar que o ouro dos garimpos ilegais, misturado ao sangue dos yanomamis, também brilha nas vitrines da Bahnhofstrasse em Zurique. É nesse sentido que a cenografia da peça põe um grande espelho no fundo do palco. Na Suíça, aquela desprezível camarilha não é bem um outro distante.

Davi Kopenawa, que nunca tinha assistido a um espetáculo de teatro, subiu no palco para os aplausos finais e saiu feliz. "Eu aprendi mais", disse ele, porque a peça "mostrou como funciona o capitalismo" e que "isso tudo começou aqui".

Segundo o xamã e líder yanomami, o espetáculo "mostrou o barulho da queda do céu". "Foi muito impressionante, foi como se tivesse quebrado o céu lá em cima. E isso se apresentou no teatro para nós e também para os não indígenas, para eles aprenderem e acreditarem."

A fala de Kopenawa assinala a imagem da tragédia que pulsa da montagem, mas também a força de resistência que emana dali. As formas violentas do capitalismo são contestadas, no espetáculo, pela voz yanomami.

Textos de "A Queda do Céu" substituem a fala premonitória das bruxas e dos espíritos na tragédia de Shakespeare e criam um contraponto para os acontecimentos, além de envolverem o início e o final da montagem.

Também as mulheres, que aparecem no começo como quadros fixos projetados nos cenários, rompem aos poucos aquela moldura. O corpo da dançarina negra Titilayo Adebayo, por exemplo, é projetado por todo o teatro em um forte contraste com o modo violento dos homens se movendo no centro do palco. São várias as imagens da resistência convivendo com o horror.

Segundo a diretora Christiane Jatahy, "não é uma peça sobre um fatalismo irrevogável, inegável. É uma peça sobre o horror, mas também sobre a urgência de acabar com esse horror".

O espetáculo é a segunda parte da trilogia que começou com "Entre Chien et Loup", ou entre cão e lobo, inspirada no filme "Dogville", de Lars von Trier, e que fala sobre a forma silenciosa como o fascismo reaparece nas formas de sociabilidade contemporânea.

A última parte será desenvolvida no Brasil, a partir de dezembro. "Depois do Silêncio" será sobre as formas modernas da escravidão e terá como material de base o celebrado romance "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior, colunista deste jornal. A estreia está prevista para junho do ano que vem, também na Europa.

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