Movimentação nas ruas da cidade mexicana de Mérida, durante o Paseo de Ánimas, evento realizado como parte das celebrações do Dia dos Mortos, no México. . Crédito: Bete Marques/Ofotográfico/Folhapress
Ruas enfeitadas com bandeirolas; altares de celebração, com rosas e velas; pessoas fantasiadas de "La Catrina" ("dama da noite" em formato de esqueleto criada pelo cartunista José Guadalupe Posada, em 1910); procissões com caminhos de flores ("auxiliando" os mortos em sua travessia rumo a Terra, para nos encontrar); e até festejos em cemitérios para celebrar o "encontro" com entes queridos que não estão mais entre nós, quase sempre regrados a verdadeiros banquetes. Mortos e vivos "juntos", em um momento especial e de cumplicidade.
O clima de carnaval carioca (sem exageros) dá o tom das comemorações do "Dia dos Mortos", ou"Día de los Muertos", no México, evento que dura 48 horas (entre 1º e 2 de novembro) e, antropologicamente, é um retrato fiel do significado da morte, e do luto, para a sociedade mexicana: festa, reencontro e celebração, em um evento de mais de três mil anos originário de civilizações pré-hispânicas. Lembra o filme "Viva", premiado com o Oscar em 2019, a vibe é essa mesmo?
Sabendo que mexicanos são tão ou até mais religiosos que brasileiros e, como nós, muito arraigados à tradição cristã propagada pela Igreja Católica, quando o assunto é reencarnação, por exemplo, uma celebração desse porte pode nos soar mórbida ou até mesmo desrespeitosa. Enquanto muitos moradores do nosso país veem a morte como uma fatalidade, a certeza definitiva de que não vamos mais encontrar a pessoa que se foi (a dor que isso pode causar vem de "bônus"), no México, a "partida" representa o contrário, um momento de encontro, de confirmar que sempre estaremos próximos de quem desencarnou.
"O México embarca na herança das culturas pré-colombianas, em um embate com a presença do colonizador espanhol, que impôs as tradições cristãs do luto e da morte. Entre os Astecas, que ocupavam o território, havia outra tradição, que é a dos mortos visitarem os vivos no Dia dos Mortos. Com muita festa, o povo mexicano mostra-se feliz com esse reencontro", explica Jorge Luiz Nascimento, Professor do Departamento de Línguas e Letras da Ufes e Doutor em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas.
La Flaca, a Santa Muerte: mesmo banida pela Igreja Católica, santa continua cultuada pelo povo mexicano. Crédito: Reprodução/ Wikipédia
"E esse ritual foi se modernizando e virou tradição. Agora temos as caveirinhas, existe até uma virgem caveira, a La Flaca (também conhecida como Santa Muerte), que foi banida pela Igreja Católica mas continua cultuada. Há até festas para crianças nessa época. Tudo por um motivo: o desejo de confirmar para os mortos que está tudo bem com os vivos. Por isso, é preciso ter alegria, música, bebida e comida, uma celebração da vida", ressalta Nascimento.
"O ritual acaba sendo um contraste com a ideia do Cristianismo, que defende o luto, o choro e o silêncio. Em termos de Psicologia Social, por exemplo, podemos dizer que, independente da presença da morte, uma situação natural do ser humano, o que precisamos festejar é o fato de estarmos vivos".
TRADIÇÃO
E não é só no Mexico que a morte é vista sob outro prisma. Em alguns lugares da Indonésia, por exemplo, existe um ritual no mês de agosto chamado Ma'Nene, ou "A Cerimônia de Limpeza de Corpos", quando os mortos são exumados, sejam idosos ou crianças, e arrumados com novas roupas e levados para suas casas. Ah, sim: caixões ou túmulos são restaurados, de modo que possam ser reutilizados em um novo sepultamento. De acordo com as crenças do povo de Toraja, que pratica esse ritual, os espíritos dos mortos precisam retornar à vila de origem para conviverem com os vivos.
O ritual Ma'Nene acontece na Indonésia. Crédito: Reprodução/YouTube
Também na Ásia, temos o exemplo do Japão, em que o velório é feito com vários rituais, com altares na casa dos familiares. Há também o simbolismo da cremação, conhecida como Ososhiki, onde pessoas da família separam as cinzas com hashis especiais, colocando os restos em uma urna. As cinzas podem ser depositadas em jazigos ou em um Butsudan, um pequeno altar com a foto do morto, também usado para fazer orações a Buda.
"Há uma crença no Japão de que a morte não representa tristeza. É vista apenas como passagem espiritual, tanto que familiares dos falecidos preparam banquetes. A questão do recolhimento das cinzas é um momento especial. Normalmente, o morto deixa um pedido indicando onde deseja que seus restos sejam colocados. Muitos preferem colocar as cinzas em um altar, nas suas casas, ao lado da família. Tudo para que a pessoa fique presente mais tempo entre eles", explica Antonio Nokai, vice-presidente da Associação Nikkei de Vitória.
Altar com flores e fotos em um velório no Japão: forma de manter a família unida. Crédito: Akiyoko/ site Coisas do Japão
No Japão, também é comum amigos presentearem familiares dos mortos com dinheiro para pagar os rituais, que custam em média em 2 milhões de ienes (quase R$ 100 mil reais). "Esse presente é colocado em envelopes chamados Koden. Esses rituais, heranças do budismo e do xintoísmo, servem para que os mortos sempre estejam presentem na vida de seus entes queridos. Para os brasileiros, a morte pode representar dor e perda. Em países orientais, é vista apenas a passagem do mundo físico para o espiritual. O espírito vive presente diariamente em nossas vidas", detalha Nokai.
E vem da Ásia outro exemplo do morte ligada ao plano espiritual. Em um país com mais de 1 bilhão de habitantes, e várias religiões, a Índia vê a "partida" de forma peculiar. Sob o prisma do hinduísmo, por exemplo, há a certeza da eternidade. Segundo os ensinamentos da Bhagavad Gita (texto sobre autoconhecimento da tradição indiana), o falecimento pode ter duas perspectivas: da transmigração da alma e a da libertação da existência material, portanto, não há tristeza com o suposto fim da vida.
É impossível pensar como parte dos indianos veem a morte sem fazer uma ligação com o Rio Ganges, sagrado para o seu povo. Diariamente, à beira do Ganges, corpos são cremados em pilhas de madeira, com cinzas sendo jogadas na água. Segundo o hinduísmo, o ato leva a alma a atingir o Moksha, estado de libertação deste ciclo de ressurreições que prende o homem aos sofrimentos terrenos.
PERSPECTIVAS
Segundo Luciana Bicalho, professora do Departamento de Psicologia da Ufes que desenvolve o núcleo de pesquisa "Projeto AcolheDOR", fornecendo atendimento gratuito a pessoas em processos de luto, não existe forma certa ou errada de encarar a morte, nem no caso considerado mais extremo pela cultura oriental, como os indonésios que desenterram e trocam as vestimentas de seus entes queridos anualmente.
"Não é questão de ser mais saudável ou menos saudável. É uma questão puramente cultural. Tem uma função simbólica, uma amálgama que nos une e nos faz viver em um núcleo social", defende Bicalho, apontando que tradições milenares, como a mexicana e a japonesa, por exemplo, são expressões genuínas de assimilar a perda.
"Alguns rituais simbólicos e tradicionais nos ajudam a organizar a experiência da morte. No mundo ocidental moderno, por exemplo, vivemos em uma sociedade marcada pela 'pressa', que nos cobra produtividade, especialmente no trabalho. Em alguns casos, vivemos no que podemos chamar de 'Imperativo da Felicidade', que não nos permite entrar em contato com o difícil e o doloroso. Somos praticamente obrigados a sermos felizes o tempo todo. Esse contexto acaba criando uma dificuldade maior de lidar com as perdas e com o tempo do luto", acredita.
No México, famílias preparam mesas e altares com comidas e flores para receber a visita dos mortos. Crédito: Bete Marques/Ofotográfico/Folhapress
Luciana explica que, no Brasil, ao contrário de países como Japão, México e Índia, por exemplo, vivemos sob a cultura do "apagamento da morte". "Entre os mexicanos, a morte está sempre presente em formato de vida, como em festas, por exemplo. Em nosso país, pensamos o fim da vida sob o aspecto do 'apagamento', da negação", esclarece.
A especialista afirma que o brasileiro, se olharmos a tradição cristã católica, onde a morte não é vista como um fim e se acredita numa vida eterna, com rituais de oração e meditação em referência à memória das pessoas que partiram (o Dia de Finados é especialmente isso), compartilha de um tabu social, com o hábito de não conversar sobre a morte, como se ela não fizesse parte do nosso cotidiano.
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"Fazemos uma espécie de 'pacto de silêncio'. É importante mantermos laços continuados, mesmo sem a presença física da pessoa, como acontece em outras sociedades e culturas. Precisamos encontrar uma forma de criarmos uma 'Educação para a Morte', dialogar sobre o assunto com familiares e nas escolas. É essencial, por exemplo, mostrar a uma criança que ela deve manter viva a presença de um ente querido, nem que seja com uma experiência subjetiva, como fazer aulas do mesmo instrumento musical que o pai falecido praticava. Assim, veremos a partida da forma mais natural, como deve ser", complementa.
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