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Publicado em 5 de fevereiro de 2022 às 11:25
De todas as atitudes, realizações e posicionamentos precoces e, digamos, progressistas de Nara Leão - ser feminista, ter e demonstrar consciência social, fazer e estudar psicanálise, dizer publicamente que o Exército não servia "para nada" em plena ditadura militar -, a mais impactante e pioneira de todas permanece sendo o seu primeiro disco.
Quando lançou o inaugural "Nara", em fevereiro de 1964, ela tinha só 22 anos. O álbum histórico, que marcou o que se convencionaria chamar de música popular brasileira, a MPB, tem sua história contada no livro "Nara Leão: Nara - 1964", do jornalista, crítico de música e escritor Hugo Sukman.
A obra é mais um volume da série "O Livro do Disco", da editora Cobogó, dirigida por Isabel Diegues, filha de Nara e do cineasta Cacá Diegues. "Quando a Isabel me convidou, achei que seria um livro muito fácil de fazer. Que ilusão. Acabei mergulhando no disco que é um nó na história, um nó da própria cultura brasileira e de sua relação com a política", diz Sukman, que em 2018 havia escrito a peça "Nara: A Menina Disse Coisas", cujo título foi extraído do célebre poema de Carlos Drummond de Andrade sobre a artista.
Na elogiada série "O Canto Livre de Nara Leão", dirigida por Renato Terra e disponível no Globoplay, temos a vantagem de ver e de ouvir Nara cantar, tocar seu violão e, sobretudo, expressar suas ideias e sua maneira de "transver" o mundo.
Já no livro de Sukman há o privilégio de se aprofundar nas histórias que envolvem um dos discos mais importantes da MPB - com análise musical faixa a faixa, com bastidores das composições e das gravações e com contexto histórico, cultural e sociopolítico da época.
Ao longo de 224 páginas, contamos mais de cem personagens que participaram direta ou indiretamente da feitura de "Nara". A despeito do rompimento da artista com a bossa nova, os bossa-novistas estão lá -Tom Jobim, que teve seu primeiro álbum lançado no mesmo dia em que o de Nara; Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, autores de "Marcha da Quarta-feira de Cinzas" e de "Maria Moita", composição da peça "Pobre Menina Rica" estrelada por eles e por Nara e escolhida por ela para ser gravada justamente por ser a canção em que a personagem feminina expressa uma mensagem de não subserviência ao homem.
Vinicius volta a aparecer em mais duas composições feitas em parceria com Baden Powell -"Berimbau" e "Consolação", inaugurando a série de afro-sambas, gravados por Nara antes mesmo dos próprios autores.
"Por melhores que sejam os discos da Nara, nenhum tem o impacto deste primeiro. Todas as músicas são clássicos. E acho este disco subestimado em relação ao segundo, o 'Opinião de Nara', que é muito forte, muito direto, mas parece uma refilmagem do primeiro", comenta Sukman. "A Nara veio antes de tudo, antes de 'Os Afrossambas', de 1966, antes do 'Elizete Sobe o Morro' e do 'Coisas', ambos de 1965", completa o autor.
Como se não bastassem as parcerias com Vinicius e com Gianfrancesco Guarnieri -"O Morro (Feio Não É Bonito)"-, Carlos Lyra teve papel fundamental no álbum de estreia de Nara Leão. Afinal, foi ele quem, com seu gravador Geloso, registrou sambas dos chamados compositores do morro e os apresentou a Nara para que ela viesse a fazer aquilo que chamou de "reportagem musical".
Entre esses autores cujas obras acabaram indo parar no disco de Nara, estão Zé Kéti, com "Diz que Fui por Aí", em parceria com Hortêncio Rocha, Cartola e Elton Medeiros, com "O Sol Nascerá", e Nelson Cavaquinho, com "Luz Negra".
Além do jovem Edu Lobo e de Ruy Guerra, autores de "Canção da Terra" e de "Réquiem para um Amor", do produtor e diretor Aloysio de Oliveira (criador da gravadora Elenco, com destaque para as capas criadas por Cesar Villela e Chico Pereira), do arranjador Lindolfo Gaya e do compositor e maestro Moacir Santos (autor de "Nanã", gravada por Nara e que figurara na trilha de "Ganga Zumba", de Cacá Diegues), Sukman entrelaça com fluidez um sem-fim de personagens que gravitaram em torno de "Nara". São nomes ligados ao Centro de Pesquisa Popular, CPC, e à União Nacional dos Estudantes, UNE, ao cinema novo e ao Zicartola.
"O livro tem uma narrativa meio elíptica. Não queria dar a impressão de que é uma história linear. É um grupo de pessoas que não por acaso se esbarram o tempo todo. A Nara é resultante de uma série de coisas anteriores, de uma linhagem da cultura brasileira que vai desembocar ali naquele disco", diz Sukman.
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