Grace Gianoukas interpreta Dercy Gonçalves no teatro em peça em cartaz no Estado neste fim de semana. Crédito: Heloisa Bortz
Falar de Dercy Gonçalves é reacender o mito da atriz e vedete que quebrou tabus na TV, rádio e cinema com seu bom humor e jeito despudorado (e desbocado) de ser. Afrontosamente (no bom sentido da palavra), encarou a censura da ditadura militar para se tornar uma das personalidades mais populares de um país que, até metade dos anos 1980, desconhecia a palavra democracia.
Nada mais justo que escalar outro grande nome da dramaturgia nacional, Grace Gianoukas, para reviver um pouco da história e da personalidade dessa mulher de Santa Maria Madalena/RJ - morta em 2008, aos 101 anos - nos palcos com a peça "Nasci pra ser Dercy", em cartaz no Teatro Universitário (Ufes), Vitória, sábado (23) e domingo (24).
Na montagem de Kiko Rieser, com participação afetiva de Miguel Falabella (em narração em off), Grace encarna - com seu peculiar talento - Vera, uma atriz que decide fazer um teste visando interpretar Dercy em um filme.
Só que o B.O é mais embaixo. Conforme encena, Vera se revolta com um roteiro cheio de estereótipos. Empenhada, ela decide dar sua própria versão sobre quem realmente foi a mulher que viveu à frente de seu tempo (e que todos nós amávamos!).
"Interpretar Dercy é uma honra em um desafio", afirmou Grace, em entrevista a HZ. "É uma pessoa que está muito viva na mente. Uma coisa é interpretar Lady Macbeth (icônica personagem de Nikolai Leskov), pois ninguém a viu e não sabe como ela agia, mas viver uma personagem do nosso século, e do nosso tempo, é um desafio a qual me dediquei e pesquisei muito", adianta.
"Também tentei ir além do que as pessoas têm de imagem da Dercy, basicamente restrita ao fim de sua vida. Ela fazia muita palhaçada, sempre brincando, com seu humor peculiar. Mas tinha outro lado, a Dolores Gonçalves Costa. Fiz muita pesquisa, li entrevistas e também me baseei nessa pessoa física para criar uma personagem verossímil. Quando ela não estava em cena, por exemplo, tinha outro comportamento, não era tão histriônica. Lutei para compor uma Dercy real", afirma.
Esta é a primeira montagem que rememora Dercy Gonçalves nos palcos nacionais, montada 15 anos após sua morte. "Sua sobrinha, Lucy Freitas, escreveu um livro, "Minha Tia Dercy". A adaptação para os palcos foi feita no exterior e chegou ao Brasil."
POPULAR
Dercy era conhecida por ser uma atriz popular, querida especialmente pelas pessoas mais humildes. Na peça, seu lado debochado e desbocado, que tanto agradava o público, segue intacto.
"Isso é a marca de Dercy Gonçalves, pois mostrava força junto a uma sociedade machista, misógina e preconceituosa. Ela se levantou contra tudo isso. Considerando que foi uma mulher nascida em 1907, e que saiu da miséria para se tornar uma referência, mostra que temos muito o que aprender com ela", adianta Gianoukas, relatando que a montagem mostra ainda a infância e as lutas de Dercy.
Por falar em batalhas contra preconceitos, Gonçalves contestava a censura da ditadura militar e quebrava rótulos. Tanto que chegou a mostrar o seio várias vezes na TV. Ela dizia tratar-se de uma transgressão para uma mulher da sua idade.
Com um Brasil politicamente polarizado, e em um forte ascensão de uma sociedade conservadora, será que a atriz teria a mesma postura atualmente ou seria "cancelada"?
"Ela lutou pela liberdade das pessoas serem o que são, sem questionamentos. Isso é muito forte nela. Acredito que seria 'cancelada' hoje, sim, mas foi 'cancelada' em sua época inúmeras vezes. Enfrentou censores e moralismos, mas teve amigos fiéis que ignoravam uma sociedade hipócrita. E acho, também, que ela teria o mesmo espaço na mídia hoje. A TV hoje é troca de casais e largados e pelados (risos). A televisão mudou muito e Dercy 'chutou a porta' para essas mudanças acontecerem. Para mulheres que estavam buscando sua independência, foi, mesmo sem querer, uma guerrilheira da liberdade feminina", enfatiza.
Para mulheres que estavam buscando sua independência, Dercy foi, mesmo sem querer, uma guerrilheira da liberdade feminina
Mudando o rumo da prosa, por sua elogiada performance em cena, Grace Gianoukas foi indicada ao prêmio Bibi Ferreira de Melhor Atriz, como também foi nomeada, na mesma categoria, ao conceituado troféu da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A artista traduz o reconhecimento em formato de estímulo para seguir na carreira.
"Estou indicada ao lado de tantas atrizes que admiro por sua potência e talento. Todos os prêmios que recebi, sem desmerecê-los, não me garantiram, por exemplo, a continuidade de um emprego, importantíssimo para um artista", responde, parando para pensar antes de seguir com sua linha de raciocínio.
"O melhor prêmio que podemos receber vem do reconhecimento do público. A gente faz esse trabalho para eles. Me preocupo muito em levar o meu melhor absoluto (enfatiza a palavra melhor) para essas pessoas que saem de suas casas para nos prestigiar. Tenho um profundo respeito pelo palco e pelo público. Com a maturidade, vamos tendo ferramentas de inteligência emocional para entender melhor os personagens que interpretamos. O tempo só aprimora o trabalho do artista. Faz com que ele se entenda mais em seu espaço de trabalho", filosofa.
Com a maturidade, vamos tendo ferramentas de inteligência emocional para entender melhor os personagens que interpretamos. O tempo só aprimora o trabalho do artista. Faz com que ele se entenda mais em seu espaço de trabalho
IDENTIFICAÇÕES
Claro que essa pergunta não poderia faltar: o que Grace tem de Dercy? E ousamos indo mais além, ao questionar à entrevistada o que supostamente Dercy teria de parecido com ela.
"Entendi um pouco o que a gente tinha em comum depois que comecei a estudá-la para fazer o espetáculo, vendo melhor sua vida profissional e pessoal. Como Dercy, também não me sentia adequada em nenhum lugar. Encontrei na arte um veículo de conforto e de expressão. Um lugar que fez florescer minha inquietude e rebeldia. Mas, ao contrário dela, tive apoio da família. Ela, ao contrário, não teve nenhum quando saiu de Santa Maria Madalena. Em relação ao que Dercy tem de Grace, seria muita ousadia responder (risos). Só saberia se a conhecesse muito. Mas acho que ela foi como eu: autora, diretora, produtora e atriz. Nesse sentido profissional, somos parecidas", responde, dizendo que chegou a conhecer pessoalmente a biografada.
Grace Gianoukas em cena na comédia "Nasci pra ser Dercy". Crédito: Heloisa Bortz
"Nos vimos uma vez durante uma apresentação dela em São Paulo a convite do Jornal da Tarde. Foi uma matéria que resgatava as grandes e as novas comediantes. Foi um show engraçadíssimo. No final, bateu um papo conosco. Não esqueço o conselho que nos deixou: 'Não fiquem mostrando o corpo de vocês a torto e à direita. É uma exposição da juventude e da sexualidade. Deixem para mostrar os peitos na minha idade. Uma 'velha' mostrando é transgressor e uma jovem expondo o corpo é só o uso da juventude", rememora, com carinho e boas recordações.
Dercy, em um bate-papo com um grupo, nos deixou esse conselho: 'Não fiquem mostrando o corpo a torto e à direita. É uma exposição da juventude e da sexualidade. Deixem para mostrar os peitos na minha idade. Uma 'velha' mostrando é transgressor e uma jovem expondo o corpo é só o uso da juventude
PAPÉIS
Grace Gianoukas ganhou repercussão nacional especialmente por um projeto inovador, o "Terça Insana", pelo qual ela nutre um imenso carinho. "Foi um projeto que criei, botei pilha nas pessoas (risos), escrevi, produzi, dirigi, fazia a trilha sonora e incentivava os atores a escrever. Foram 15 anos com essa oficina de criação, com mais de 363 espetáculos completamente diferentes. Cerca de 400 atores passaram pelo palco. Como geradora desse 'hospício', chegou um momento em que não aguentava mais. Corria atrás de tudo, da produção e ainda de grana para pagar pessoas que trabalhavam na produtora. Foi uma responsabilidade enorme, mas um projeto que marcou a história da comédia contemporânea e que me deixa muito orgulhosa."
Entre seus trabalhos na televisão, é impossível não lembrar de Teodora Abdala, na novela "Haja Coração", da Rede Globo, em que Grace reviveu a personagem que marcou Jandira Martini, em "Sassaricando", de Silvio de Abreu, trama na qual o folhetim se baseia.
"Fui convidada algumas vezes para fazer novelas, mas, por conta do Terça Insana, minha agenda era um pouco fechada. Queria ser desafiada a criar mais e ser dirigida por outras pessoas. Quando veio o convite do Silvio de Abreu (para "Haja Coração") pude aceitar, pois já tinha arrumado um espaço na vida profissional e pessoal. E foi divertido, pois gosto de fazer televisão. É algo que me desafia e me dá novos conhecimentos", complementa, revelando que está cheia de projetos para o próximo ano. Aguardamos ansiosos!
"NASCI PARA SER DERCY"
- QUANDO: Sábado (23), às 20h, e domingo (24), às 17h
- ONDE: Teatro Universitário (Ufes). Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória
- INGRESSOS: Para sábado, disponível no Setor B: R$ 120 (inteira) e R$ 60 (meia). No domingo, disponíveis nos setores A e B: R$ 120 (inteira) e R$ 60 (meia)
- COMO COMPRAR: On-line através do site Sympla ou na bilheteria do teatro, de terça a sexta, das 14 às 19h. A sessão de domingo contará com intérprete de libras.
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