Repórter / aline.almeida@redegazeta.com.br
Publicado em 29 de setembro de 2024 às 07:00
Desde o início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, o interesse por modelos de relacionamento não-tradicionais, como o poliamor, cresceu significativamente. Relatórios do Google Trends indicam um aumento expressivo nas buscas relacionadas à não-monogamia, refletindo uma maior curiosidade desses modelos por parte da sociedade brasileira.
O poliamor é um tipo de relacionamento em que os parceiros se permitem ter vínculos amorosos com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, com o consentimento e conhecimento de todos os envolvidos. Diferente de um relacionamento aberto, onde o foco geralmente está na permissão para envolvimentos sexuais fora do casal, o poliamor envolve a formação de múltiplas relações afetivas profundas.
Um estudo realizado pela Comissão de Pesquisas Científicas e Jurisprudências do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM-DF) identificou que os poliamoristas brasileiros pertencem a diversas faixas etárias, de 18 a 67 anos, e possuem uma formação acadêmica elevada, abrangendo diferentes profissões, gêneros e sexualidades.
HZ entrevistou três mulheres, duas capixabas e uma carioca, que vivem em um relacionamento poliamoroso conhecido como trisal. Com medo de sofrerem preconceitos, elas preferiram não se identificar e utilizar os codinomes Thalita, Carol e Marina.
Carol conheceu Marina no ensino médio e já possuíam interesse uma na outra, apesar de não terem engatado em um relacionamento à época. Anos depois, durante a faculdade no Rio de Janeiro, Carol conheceu Thalita, se apaixonaram e iniciaram um relacionamento. Em 2021, com o relacionamento entre Carol e Thalita já aberto, Marina e Carol voltaram a conversar. O trio se encontrou pessoalmente em Vitória e, desde então, desenvolveu uma conexão que as levou a um namoro a três e, posteriormente, a morarem todas juntas.
“A vantagem de sermos três é ter mais mãos para fazer as tarefas de casa!”, disse Carol em tom de brincadeira. “Mas, brincadeiras à parte, é incrível ter sempre mais opiniões, perspectivas, noções de mundo que convergem para uma decisão mais acertada. Ou seja, a gente segue a vida com mais calma e mais clareza sobre os caminhos e o que faz bem pra gente. Porém, para isso tudo acontecer, tem que ter muito diálogo”, afirmou.
O trisal conta que um pouco de ciúmes e, às vezes, a insegurança também fazem parte da dinâmica, assim como em qualquer outro relacionamento. “Para lidar com esses sentimentos, nós três fazemos terapia uma vez por semana e temos tempo para nós mesmas, tempo sozinhas, de qualidade. Focar em se cuidar ajuda muito a conseguir lidar com nós mesmas e com o mundo externo”, afirmou Carol.
Em relação à aceitação familiar, elas contam que as reações foram variadas: enquanto a família de duas delas reagiram negativamente, outra se mostrou acolhedora desde o início.
Embora a sociedade brasileira esteja gradualmente se tornando mais receptiva ao poliamor, o trio ainda enfrenta preconceitos e julgamentos. Em lugares considerados inseguros para a comunidade LGBTQIAPN+, elas evitam demonstrações públicas de afeto, mas em ambientes onde têm redes de apoio, sentem-se mais livres para viverem normalmente.
Elas contam que, atualmente, a maior preocupação está relacionada ao casamento, que é ilegal no Brasil quando envolve mais de duas pessoas. “Gostaríamos de compartilhar direitos e benefícios, tipo plano de saúde. O casamento é um tema crucial e complicado. Primeiramente porque somos três mulheres, e o casamento para casais de mesmo sexo só passou a ser legal em 2013”, disse.
A partir de 2013 os cartórios podiam adicionar três pessoas na mesma escritura pública, no caso, uma união estável, porque um trisal tem necessariamente duas pessoas do mesmo sexo atribuído. Porém, em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu os cartórios de realizarem esse formato de união estável. Essa decisão anulou as escrituras realizadas até a data e colocou diversos casais poliafetivos em uma instabilidade jurídica sobre os direitos civis à propriedade e à própria herança.
Do ponto de vista jurídico, o poliamor enfrenta obstáculos significativos no Brasil. Historicamente, o direito brasileiro tem sido conservador em relação à regulamentação de novos formatos de família. Yuri M. Maulaes, advogado especialista em direito constitucional e civil, explica que o Código Penal ainda criminaliza a bigamia, e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não reconhece uniões estáveis simultâneas.
Yuri M. Maulaes, advogado
Questionado sobre quais direitos e deveres são atribuídos a cada membro de um trisal em comparação com um casal tradicional, o advogado afirmou que “em um mundo ideal em que os legisladores exercem o seu ofício despidos de preconceitos e buscam estritamente regulamentar legalmente situações que são fatos vivenciados pela sociedade, todos os direitos relacionados ao Direito de Família e ao Direito Sucessório deveriam ser extensíveis às famílias não tradicionais”.
Segundo Yuri, o Brasil ainda está muito atrasado em relação ao reconhecimento dos relacionamentos poliamorosos. “Esses modelos de relacionamento são um fato no Brasil e a justiça tem sido muito demandada para o reconhecimento legal desses trisais. Para formalizar um relacionamento poliamoroso no Brasil, o caminho mais seguro é recorrer ao Poder Judiciário, apesar da falta de garantias de uma sentença favorável”, completou.
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