Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo. Crédito: Felipe Damasceno
No Espírito Santo, existiu uma princesa que marcou a história: Zacimba Gaba. Esse é um nome que você, provavelmente, não conhece. Isso não é à toa: pouco se fala sobre a princesa que matou um senhor de engenho, coordenou uma revolta de escravos, fundou um quilombo e dedicou o resto da vida a libertar escravizados. Hoje vamos te contar a história que todo capixaba deveria conhecer.
Por volta de 1692, Zacimba Gaba foi trazida de Cabinda, atual Angola, para o Norte do Espírito Santo. Aqui ela foi escravizada na fazenda do senhor de engenho José Trancoso. Acontece que a mudança geográfica não tirou o seu posto de princesa. Os escravizados (que vinham em sua maioria de Cabinda) a tratavam com muito respeito, afinal, ela era da realeza.
Assista a história da princesa no vídeo abaixo:
Porém, não demorou para que esse comportamento fosse notado por José Trancoso, que fez Zacimba confessar sua liderança e resolveu mantê-la na casa-grande, evitando, assim, o contato entre ela e os escravizados. Além disso, Trancoso cometeu uma série de violências contra a princesa e ameaçou matá-la caso alguém tentasse algo contra ele e seus familiares.
O que parecia ser uma ótima solução para o senhor de engenho acabou sendo um grande tiro no pé. Na casa-grande, Zacimba passou a ter contato com a comida que era feita e, aos poucos, envenenou o algoz com o chamado “pó de amassar sinhô”, feito com o veneno extraído da jararaca-preguiçosa. No entanto, essa prática era de conhecimento dos senhores de engenho, que mandavam o próprio escravizado consumir a comida em caso de suspeita. Sabendo disso, estima-se que Zacimba demorou meses ou até anos para finalmente matar José Trancoso sem levantar suspeitas.
Quando finalmente o senhor de engenho sucumbiu, uma revolta dos escravizados foi instaurada na fazenda. Os torturadores e capatazes de José Trancoso também morreram. Zacimba liderou o povo e fundou um quilombo na região onde hoje conhecemos como Itaúnas.
Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo. Crédito: Felipe Damasceno
Mas ela não parou por aí! A princesa, junto do seu povo, passou a invadir navios negreiros e libertar negros trazidos da África para serem escravizados no estado. Isso continuou por cerca de 10 anos, e algumas rotas dos navios foram alteradas por causa das ações da princesa.
O final da vida de Zacimba é misterioso. Há quem diga que ela foi morta em uma emboscada: um navio negreiro falso conseguiu encurralar a princesa e assassiná-la. Outras pessoas defendem que ela voltou para Cabinda ou até mesmo que ela nunca foi morta. Mas uma coisa podemos afirmar com certeza: Zacimba lutou pelo seu povo até o fim.
Os quilombos e a oralidade
A história de Zacimba tem origem nos quilombos, mais especificamente em Sapê do Norte, uma comunidade quilombola localizada em São Mateus, no Norte do Espírito Santo. Na cultura dos povos quilombolas, a oralidade é a principal forma de preservar e transmitir a memória. A professora Patrícia Rufino, doutora em Educação e especialista em estudos afro-brasileiros, explica que a fala era uma forma de comunicação que “libertava”, uma vez que os colonizadores não entendiam a língua.
"É necessário compreender que a tradição oral nas culturas afro-brasileiras não existia apenas porque não se escrevia a história ou porque não havia interesse em registrá-la por escrito. Ela se estabelecia porque, muitas vezes, a própria população negra escravizada precisava criar processos de oralidade que permitissem subverter a condição de escravização imposta pelos colonizadores"
Patrícia Rufino, professora
A professora também ressalta que a tradição oral dos povos africanos foi explicada sob a ótica do colonizador, sendo entendida como um “déficit” intelectual da população negra. Quando, na realidade, a utilização da oralidade era uma ferramenta pensada, justamente, para permitir a liberdade dos escravizados.
“As populações egípcias já utilizavam a escrita quando registraram suas histórias nas paredes das pirâmides. O problema não está na questão da historização, mas na astúcia necessária para subverter o projeto de escravização. Portanto, não se tratava de não saber ler ou escrever, como foi narrado pelos escravizadores e perpetuado ao longo do tempo. Essa visão se reflete até hoje, na contemporaneidade, ao construir um olhar pejorativo sobre a criança negra, afirmando que ela não sabe ler ou escrever por falta de acesso. Não é isso. Existem outras questões subjacentes a esse processo, que foram estereotipadas pelo colonizador e pela população branca para perpetuar o racismo."
Foi por meio dessa estratégia que a história de Zacimba foi passada por gerações, assim como outras histórias tradicionais e rituais religiosos.
Zacimba Gaba: literatura, teatro e audiovisual
Embora a história da princesa guerreira não seja amplamente conhecida, ela já foi retratada em diversas obras, como no documentário "Zacimba Gaba – Um Raio na Escuridão" (2020), dirigido por Tati Rabelo e Rod Linhales, que combina animação e narrações para contar a história. O filme fez parte da 27ª edição do Festival de Cinema de Vitória Itinerante.
Outro documentário sobre a princesa foi "Zacimba Gaba: A Guerra pela Liberdade", dirigido por Marcelo de Oliveira. O filme surgiu a partir da disciplina Afroteatrando, ministrada pela professora Quitilane Pinheiro, na qual os estudantes trabalharam com o livro "Zacimba, a Princesa Guerreira: A História que Não te Contaram". Antes da obra audiovisual, o texto também foi adaptado para o teatro e se tornou uma peça, que foi encenada na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Américo Silvares.
As três Zacimbas em "Zacimba, a Princesa Guerreira: A História que Não te Contaram". Crédito: Quitilane Pinheiro
Eu sempre promovo a educação étnico-racial e me considero uma professora antirracista. Por isso, pensei: 'se vamos trabalhar com teatro, que seja com uma literatura representativa'. Os estudantes não tinham o reconhecimento de uma escritora negra e desconheciam a história de Zacimba
Essa escritora é Noélia Miranda, pedagoga e pesquisadora, que escreveu dois livros infantis sobre o tema: "Zacimba Gaba, a Princesa Guerreira - A História que Não te Contaram" (que inspirou a peça e o documentário) e "Zacimbinha, Princesa, Sapeca e Guerreira". Assim como a professora de São Mateus, Noélia também acredita que a educação precisa ser antirracista e desconstruir estereótipos. No processo de escrita do primeiro livro, ela conta que também buscou ouvir seu público-alvo: as crianças.
"Decidi deixar a história amadurecer junto às crianças. Na época, eu trabalhava como pedagoga em uma escola e visitava sala por sala, perguntando o que elas achavam da história. As crianças me traziam relatos incríveis, e, a partir deles, comecei a perceber nuances que, como adulta, inicialmente não enxergava
Noélia Miranda, escritora e pedagoga
"Eu via a resistência, a questão da cor da pele e a tristeza como elementos centrais. Mas queria ir além: queria entender o que as crianças estavam vendo, como estavam lendo e recebendo essa história que suas professoras contavam em sala de aula. Era pedagoga e pesquisadora, e levei o texto para a escola, mesmo sem o protótipo do livro, para explorar essas percepções e aprender com elas.”
Natural de Montanha, região próxima a localidade de Zacimba, no norte do Estado, a escritora conta que decidiu escrever sobre a princesa porque considera a sua trajetória um sucesso e entende que a heroína não morreu, tendo em vista o legado por ela deixado.
“Entre as várias histórias, o nome de Zacimba foi o que mais me marcou, pois sua trajetória é uma história de sucesso. Algumas pessoas podem questionar: ‘Mas ela morreu.’ No entanto, eu afirmo em meu livro que a Zacimba não morreu. Essa ideia de morte como um fim absoluto é, na verdade, parte de um processo colonial, uma perspectiva que encerra a vida de forma definitiva e distante. Numa visão africana ou afrocentrada, a morte é diferente. Pensamos que, ao morrer, a pessoa deixa um legado, uma semente, sua história para ser contada e recontada.”, explica Noélia.
Outros livros também contam a história ancestral, em "Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis", obra de Jarid Arraes, cordéis e ilustrações contam de forma leve e lúdica a vida da princesa e de outras mulheres negras que tiveram suas histórias invisibilizadas. O escritor capixaba Maciel de Aguiar também pesquisou e escreveu sobre Zacimba, em seu livro "Zacimba Gaba : princesa, escrava, guerreira", ele cruzou relatos com fatos históricos para traçar a narrativa.
“Em 1977, o meu amigo e historiador, Caio Prado Júnior, me falou sobre as “ordens régias que orientavam os navios negreiros a tomar cuidado na Costa do Brasil”, sobretudo entre o Mucuri e o Cricaré, “devido os ataques às embarcações, principalmente para a libertação dos negros que vinham da África para o Porto de São Mateus”. Nem mesmo Caio Prado sabia da existência de Zacimba Gaba, e, quando lhe contei o que havia pesquisado, ele me orientou a usar as duas informações.”, contou Maciel.
Homenagens
Atualmente, a memória de Zacimba é lembrada e perpetuada. A Universidade Federal do Espírito Santo inaugurou, no ano passado, um mosaico no restaurante universitário do campus de São Mateus em homenagem à princesa, idealizado pelo artista Thiago Rabelo. A obra foi feita em conjunto com mulheres quilombolas da comunidade Dilô Barbosa, em São Mateus.
Mosaico Zacimba Gaba na Ufes de São Mateus. Crédito: Maurício Lima e Souza
A Assembleia Legislativa do Espírito Santo também homenageia a história ao conceder anualmente a "Comenda Zacimba Gaba" para personalidades negras.
Este vídeo pode te interessar
Se você notou alguma informação incorreta em nosso conteúdo, clique no botão e nos avise, para que possamos corrigi-la o mais rápido o possível