Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo

Zacimba foi trazida da África e escravizada no Norte do ES. Aqui ela coordenou uma revolta e fundou um quilombo em Itaúnas

Vitória
Publicado em 20/11/2024 às 06h51
Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo

Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo. Crédito: Felipe Damasceno

No Espírito Santo, existiu uma princesa que marcou a história: Zacimba Gaba. Esse é um nome que você, provavelmente, não conhece. Isso não é à toa: pouco se fala sobre a princesa que matou um senhor de engenho, coordenou uma revolta de escravos, fundou um quilombo e dedicou o resto da vida a libertar escravizados. Hoje vamos te contar a história que todo capixaba deveria conhecer.

Por volta de 1692, Zacimba Gaba foi trazida de Cabinda, atual Angola, para o Norte do Espírito Santo. Aqui ela foi escravizada na fazenda do senhor de engenho José Trancoso. Acontece que a mudança geográfica não tirou o seu posto de princesa. Os escravizados (que vinham em sua maioria de Cabinda) a tratavam com muito respeito, afinal, ela era da realeza.  

Assista a história da princesa no vídeo abaixo:

Porém, não demorou para que esse comportamento fosse notado por José Trancoso, que fez Zacimba confessar sua liderança e resolveu mantê-la na casa-grande, evitando, assim, o contato entre ela e os escravizados. Além disso, Trancoso cometeu uma série de violências contra a princesa e ameaçou matá-la caso alguém tentasse algo contra ele e seus familiares.

O que parecia ser uma ótima solução para o senhor de engenho acabou sendo um grande tiro no pé. Na casa-grande, Zacimba passou a ter contato com a comida que era feita e, aos poucos, envenenou o algoz com o chamado “pó de amassar sinhô”, feito com o veneno extraído da jararaca-preguiçosa. No entanto, essa prática era de conhecimento dos senhores de engenho, que mandavam o próprio escravizado consumir a comida em caso de suspeita. Sabendo disso, estima-se que Zacimba demorou meses ou até anos para finalmente matar José Trancoso sem levantar suspeitas.

Quando finalmente o senhor de engenho sucumbiu, uma revolta dos escravizados foi instaurada na fazenda. Os torturadores e capatazes de José Trancoso também morreram. Zacimba liderou o povo e fundou um quilombo na região onde hoje conhecemos como Itaúnas.

Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo

Zacimba Gaba, a princesa que libertou escravizados no Espírito Santo. Crédito: Felipe Damasceno

Mas ela não parou por aí! A princesa, junto do seu povo, passou a invadir navios negreiros e libertar negros trazidos da África para serem escravizados no estado. Isso continuou por cerca de 10 anos, e algumas rotas dos navios foram alteradas por causa das ações da princesa.

O final da vida de Zacimba é misterioso. Há quem diga que ela foi morta em uma emboscada: um navio negreiro falso conseguiu encurralar a princesa e assassiná-la. Outras pessoas defendem que ela voltou para Cabinda ou até mesmo que ela nunca foi morta. Mas uma coisa podemos afirmar com certeza: Zacimba lutou pelo seu povo até o fim.

Os quilombos e a oralidade

A história de Zacimba tem origem nos quilombos, mais especificamente em Sapê do Norte, uma comunidade quilombola localizada em São Mateus, no Norte do Espírito Santo. Na cultura dos povos quilombolas, a oralidade é a principal forma de preservar e transmitir a memória. A professora Patrícia Rufino, doutora em Educação e especialista em estudos afro-brasileiros, explica que a fala era uma forma de comunicação que “libertava”, uma vez que os colonizadores não entendiam a língua.

"É necessário compreender que a tradição oral nas culturas afro-brasileiras não existia apenas porque não se escrevia a história ou porque não havia interesse em registrá-la por escrito. Ela se estabelecia porque, muitas vezes, a própria população negra escravizada precisava criar processos de oralidade que permitissem subverter a condição de escravização imposta pelos colonizadores"

"É necessário compreender que a tradição oral nas culturas afro-brasileiras não existia apenas porque não se escrevia a história ou porque não havia interesse em registrá-la por escrito. Ela se estabelecia porque, muitas vezes, a própria população negra escravizada precisava criar processos de oralidade que permitissem subverter a condição de escravização imposta pelos colonizadores"

Patrícia Rufino, professora

A professora também ressalta que a tradição oral dos povos africanos foi explicada sob a ótica do colonizador, sendo entendida como um “déficit” intelectual da população negra. Quando, na realidade, a utilização da oralidade era uma ferramenta pensada, justamente, para permitir a liberdade dos escravizados.

“As populações egípcias já utilizavam a escrita quando registraram suas histórias nas paredes das pirâmides. O problema não está na questão da historização, mas na astúcia necessária para subverter o projeto de escravização. Portanto, não se tratava de não saber ler ou escrever, como foi narrado pelos escravizadores e perpetuado ao longo do tempo. Essa visão se reflete até hoje, na contemporaneidade, ao construir um olhar pejorativo sobre a criança negra, afirmando que ela não sabe ler ou escrever por falta de acesso. Não é isso. Existem outras questões subjacentes a esse processo, que foram estereotipadas pelo colonizador e pela população branca para perpetuar o racismo."

Foi por meio dessa estratégia que a história de Zacimba foi passada por gerações, assim como outras histórias tradicionais e rituais religiosos.

Zacimba Gaba: literatura, teatro e audiovisual

Embora a história da princesa guerreira não seja amplamente conhecida, ela já foi retratada em diversas obras, como no documentário "Zacimba Gaba – Um Raio na Escuridão" (2020), dirigido por Tati Rabelo e Rod Linhales, que combina animação e narrações para contar a história. O filme fez parte da 27ª edição do Festival de Cinema de Vitória Itinerante.

Outro documentário sobre a princesa foi "Zacimba Gaba: A Guerra pela Liberdade", dirigido por Marcelo de Oliveira. O filme surgiu a partir da disciplina Afroteatrando, ministrada pela professora Quitilane Pinheiro, na qual os estudantes trabalharam com o livro "Zacimba, a Princesa Guerreira: A História que Não te Contaram". Antes da obra audiovisual, o texto também foi adaptado para o teatro e se tornou uma peça, que foi encenada na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Américo Silvares.

 Zacimba, a Princesa Guerreira: a história que não te contaram - Documentário

As três Zacimbas em "Zacimba, a Princesa Guerreira: A História que Não te Contaram". Crédito: Quitilane Pinheiro

Eu sempre promovo a educação étnico-racial e me considero uma professora antirracista. Por isso, pensei: 'se vamos trabalhar com teatro, que seja com uma literatura representativa'. Os estudantes não tinham o reconhecimento de uma escritora negra e desconheciam a história de Zacimba

Essa escritora é Noélia Miranda, pedagoga e pesquisadora, que escreveu dois livros infantis sobre o tema: "Zacimba Gaba, a Princesa Guerreira - A História que Não te Contaram" (que inspirou a peça e o documentário) e "Zacimbinha, Princesa, Sapeca e Guerreira". Assim como a professora de São Mateus, Noélia também acredita que a educação precisa ser antirracista e desconstruir estereótipos. No processo de escrita do primeiro livro, ela conta que também buscou ouvir seu público-alvo: as crianças.

"Decidi deixar a história amadurecer junto às crianças. Na época, eu trabalhava como pedagoga em uma escola e visitava sala por sala, perguntando o que elas achavam da história. As crianças me traziam relatos incríveis, e, a partir deles, comecei a perceber nuances que, como adulta, inicialmente não enxergava

"Decidi deixar a história amadurecer junto às crianças. Na época, eu trabalhava como pedagoga em uma escola e visitava sala por sala, perguntando o que elas achavam da história. As crianças me traziam relatos incríveis, e, a partir deles, comecei a perceber nuances que, como adulta, inicialmente não enxergava

Noélia Miranda, escritora e pedagoga

"Eu via a resistência, a questão da cor da pele e a tristeza como elementos centrais. Mas queria ir além: queria entender o que as crianças estavam vendo, como estavam lendo e recebendo essa história que suas professoras contavam em sala de aula. Era pedagoga e pesquisadora, e levei o texto para a escola, mesmo sem o protótipo do livro, para explorar essas percepções e aprender com elas.”

Natural de Montanha, região próxima a localidade de Zacimba, no norte do Estado, a escritora conta que decidiu escrever sobre a princesa porque considera a sua trajetória um sucesso e entende que a heroína não morreu, tendo em vista o legado por ela deixado.

“Entre as várias histórias, o nome de Zacimba foi o que mais me marcou, pois sua trajetória é uma história de sucesso. Algumas pessoas podem questionar: ‘Mas ela morreu.’ No entanto, eu afirmo em meu livro que a Zacimba não morreu. Essa ideia de morte como um fim absoluto é, na verdade, parte de um processo colonial, uma perspectiva que encerra a vida de forma definitiva e distante. Numa visão africana ou afrocentrada, a morte é diferente. Pensamos que, ao morrer, a pessoa deixa um legado, uma semente, sua história para ser contada e recontada.”, explica Noélia.

Outros livros também contam a história ancestral, em "Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis", obra de Jarid Arraes, cordéis e ilustrações contam de forma leve e lúdica a vida da princesa e de outras mulheres negras que tiveram suas histórias invisibilizadas. O escritor capixaba Maciel de Aguiar também pesquisou e escreveu sobre Zacimba, em seu livro "Zacimba Gaba : princesa, escrava, guerreira", ele cruzou relatos com fatos históricos para traçar a narrativa.

“Em 1977, o meu amigo e historiador, Caio Prado Júnior, me falou sobre as “ordens régias que orientavam os navios negreiros a tomar cuidado na Costa do Brasil”, sobretudo entre o Mucuri e o Cricaré, “devido os ataques às embarcações, principalmente para a libertação dos negros que vinham da África para o Porto de São Mateus”. Nem mesmo Caio Prado sabia da existência de Zacimba Gaba, e, quando lhe contei o que havia pesquisado, ele me orientou a usar as duas informações.”, contou Maciel.

Homenagens

Atualmente, a memória de Zacimba é lembrada e perpetuada. A Universidade Federal do Espírito Santo inaugurou, no ano passado, um mosaico no restaurante universitário do campus de São Mateus em homenagem à princesa, idealizado pelo artista Thiago Rabelo. A obra foi feita em conjunto com mulheres quilombolas da comunidade Dilô Barbosa, em São Mateus.

Mosaico Zacimba Gaba na Ufes de São Mateus

Mosaico Zacimba Gaba na Ufes de São Mateus. Crédito: Maurício Lima e Souza

A Assembleia Legislativa do Espírito Santo também homenageia a história ao conceder anualmente a "Comenda Zacimba Gaba" para personalidades negras.

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