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Publicado em 25 de janeiro de 2024 às 13:51
Desde o título, Anatomia de uma Queda, de Justine Triet, evoca seu antecessor, Anatomia de um Crime, lançado por Otto Preminger em 1959. Ambos são filmes de tribunal, girando em torno da verdade e da dificuldade, talvez impossibilidade, de chegar a ela.
As circunstâncias, porém, são bem outras: o filme de 1959 remetia aos rescaldos da caça às bruxas macartista, requentada pela Guerra Fria. Nos Estados Unidos, a paranoia fazia vizinhos se estranharem, perguntando um se o outro seria agente comunista. O tribunal, frequente no cinema da época, era o lugar onde se tentava distinguir o falso do verdadeiro.
Os tempos são outros. Os julgamentos são sumários e nem é preciso passar por tribunais: na internet, sábios palpiteiros já conhecem a verdade sobre mais ou menos tudo.
Os novos tempos fazem de Anatomia de uma Queda um processo menos do crime, ou suicídio, que se discute a autoria, do que da leviandade com que se distribui justiça em lugares como redes sociais, com repercussões imediatas na realidade.
O contrapé desses ritos sumários é o que apresenta o filme Justine Triet. Ali, a bem-sucedida escritora alemã Sandra Voyter - a excepcional Sandra Hüller - tem de se entender com o fracasso do marido e um filho com deficiência visual profunda. Passemos pelo fato que o problema do filho surgiu de um acidente provocado pelo pai. O fato é que as repercussões sobre o casamento foram profundas.
E mais profundas ainda se tornam quando Samuel, o marido, morre de uma queda da sacada da casa onde moram, nos alpes franceses. Casa isolada e onde não havia ninguém exceto a mulher e o falecido. Obviamente, a mulher se torna suspeita.
Triet tem a elegância e a delicadeza de nos conduzir ao labirinto retórico de um tribunal de júri, onde as evidências somem e reaparecem conforme advogados e promotores. O quadro do julgamento passa, em grande medida, por uma anatomia do casamento e seus percalços. Não são poucos, a começar pelos abalos que o sucesso da mulher provoca no marido, que não consegue escrever um romance sequer, enquanto Sandra engata best-seller atrás de best-seller.
Não é só. Ele é francês, ela, alemã. Para todos se entenderem melhor, se comunicam em inglês. Ela não mora em seu lugar favorito para agradar o marido, que, por sua vez, morre de ciúmes dela e não só pelo êxito literário.
Vamos e venhamos, à parte a sobrecarga com a visão deficiente do filho, não são problemas assim tão inéditos. E nem as suas discussões - triviais, elevadas à condição de quase prova do crime em certos momentos. A crise conjugal é um acessório importante, mas ainda assim um acessório à questão central tratada por Triet.
Ela é: onde está a verdade? Como distinguir o real do imaginário? O fato da ficção? Sobretudo se o que o filme mostra é fatos serem matéria-prima de ficções verborrágicas com que se procura convencer os jurados.
Entre tantas palavras, o filme evolui focando muito mais nos rostos dos personagens, em seus sofrimentos e perplexidades. Eles estão envolvidos no caos judiciário, quer dizer, nessa busca da verdade em que é impossível distinguir até aquilo em que se crê verdadeiramente de atitudes e discursos que se adotam por pura conveniência.
O parto da verdade é difícil - se é que é possível - e por mil e um motivos a mulher é fragilizada durante um processo dessa natureza. Mais do que tudo, a justiça é também um rolo compressor pronto a amassar todos os lados interessados em favor da vaidade de seus operadores.
O que faz ressaltar essa imensa vaidade jurídica - na verdade, humana, pois tudo, sobretudo os desencontros do casal, giram em torno da vaidade - é a imensa modéstia com que Triet conduz a ação. A cada instante seu empenho está em mostrar o funcionamento das falíveis instituições com o máximo de discrição.
Seu trabalho, suas posições e movimentos de câmera não estão lá para "brilharecos", mas para revelar algo - o que não impede que a cena em que o marido aparece morto, sangue sobre a neve, logo no início, já leve o espectador a ver que não está mexendo com qualquer uma.
Essa arte que se esconde enquanto mostra com rigor talvez seja uma das razões que levou Triet a ganhar a Palma de Ouro em Cannes no ano passado.
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