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Publicado em 22 de dezembro de 2023 às 15:38
Não houve espaço para os super-heróis. Quem salvou o cinema em 2023 foi um estranho trio formado por uma boneca loira, um encanador bigodudo e um cientista americano que, num drama de três horas com várias cenas em preto e branco, deixou claro que o público quer ver, sim, histórias originais nas telas.
"Barbie" e "Super Mario Bros.: O Filme" não são exatamente uma novidade, e beberam da nostalgia para arrecadar, cada um, cerca de US$ 1,4 bilhão nas bilheterias mundiais. Mas também não são sequências ou derivados de longas já existentes. São histórias próprias, aparentemente inofensivas, mas que chacoalharam as vendas de ingressos e a cultura pop ao longo do ano que se encerra.
O terceiro lugar nas bilheterias, por outro lado, é o tipo de azarão que muitos acharam que seria descartado com sua data de estreia marcada junto com a de "Barbie". "Oppenheimer", no entanto, surpreendeu com seus US$ 950 milhões, mesmo com o tempo de tela elevado e os diálogos verborrágicos e cabeçudos de Christopher Nolan.
Essa combinação gerou uma explosão nuclear nos cinemas, e "Barbie", de Greta Gerwig, e "Oppenheimer" dominaram boa parte das discussões ao longo do ano. Cunharam, até, o termo "Barbenheimer", para descrever a estranheza da presença dos longas um cor-de-rosa e adocicado e outro preto e branco e amargo de forma simultânea nas salas.
A tríade, no entanto, não foi suficiente para que os cinemas voltassem ao patamar pré-pandemia. Nos Estados Unidos, os números subiram em relação ao ano passado, mas os US$ 8,37 bilhões arrecadados no país até o meio de dezembro ainda estão distantes da média anual de US$ 11 bilhões mantida na última década.
Por causa ou consequência dos novos hábitos de ida ao cinema, a Disney, vale dizer, não conseguiu emplacar nenhum filme no clubinho do bilhão. É a primeira vez em uma década que isso acontece, desconsiderados os anos mais afetados pela pandemia, 2020 e 2021. Para efeito de comparação, em 2019 foram sete os longas do estúdio a cruzar a marca.
É uma notícia indigesta no ano em que a Disney comemorou seu centenário. Para além dos números, notou-se ainda uma saturação dos super-heróis, jedi e princesas de carne e osso, que nos últimos anos foram essenciais para seus cofres.
Tanto nos cinemas quanto no streaming, produções do Universo Cinematográfico Marvel, da franquia "Star Wars" e que adaptaram animações para live-action no caso, "A Pequena Sereia" não geraram o frenesi de antes, e serviram de mau-presságio para o subgênero dos super-heróis, que após 15 anos no topo das bilheterias deixou de voar longe.
"As Marvels", por exemplo, frustrou com US$ 202 milhões de arrecadação mundial, quatro anos depois de sua protagonista faturar US$ 1,1 bilhão em "Capitã Marvel". Já "Pantera Negra: Wakanda para Sempre", lançado no finzinho de 2022, também ficou aquém do filme original, com US$ 859 milhões versus US$ 1,3 bilhão. Na concorrente Warner, outra em ano de centenário, "The Flash" desacelerou a onda heroica com apenas US$ 270 milhões.
E se as bilheterias lá fora demoram a se recuperar mas ao menos mostram sinais de que estão se fortalecendo, no Brasil a situação é mais grave. Os números estão longe de voltar ao patamar pré-pandemia, e há expectativa no setor para saber que produção nacional conseguirá levar ao menos um milhão de espectadores às salas.
A julgar pelos últimos meses, a tarefa será árdua, basta notar que o maior sucesso do cinema nacional em 2023, "Nosso Sonho", conquistou apenas 484 mil espectadores. No ranking, os números vão caindo drasticamente, o que ajudou a incendiar a relação entre produtores e o parque exibidor.
O primeiro setor acusa o segundo de privilegiar produções estrangeiras e de empurrar títulos nacionais para horários e salas de pouco prestígio, ou até mesmo para fora dos cinemas, para abrir espaço para blockbusters importados. Já os exibidores lutam contra o sucateamento e a falta de público após a catástrofe pandêmica.
Discussões como essa complicam a equação por trás da chamada cota de tela, mecanismo criado para dar espaço à produção nacional, mas desatualizado e que agora pena para ser posto em prática. A expectativa é que a discussão ganhe fôlego no ano que vem, com aguardadas movimentações nas casas legislativas e no Ministério da Cultura de Margareth Menezes, que já defendeu medida.
Também com impacto na indústria local, as greves dos roteiristas e dos atores de Hollywood foram outros assuntos delicados a pautar o ano cinematográfico. A primeira durou 148 dias, e a segunda, 118, sendo boa parte deles de forma concomitante.
Entre as demandas do WGA e do SAG-Aftra, os sindicatos das categorias, estavam várias relacionadas ao uso de inteligência artificial. Com o ChatGPT em alta, o ano foi de ameaça para o trabalho de roteiristas, atores, dubladores, dublês e figurantes, que se viram forçados a assinar contratos de trabalho que permitiam o uso de sua escrita, aparência e voz para a criação de versões digitais em projetos vindouros algo agora barrado pelos acordos que encerraram as paralisações.
Também se sentindo ameaçados pelas novas relações de trabalho impostas não apenas pela inteligência artificial, mas também pela mudança nos hábitos de consumo e a ascensão do streaming, trabalhadores de efeitos especiais decidiram criar seu próprio sindicato nos Estados Unidos, evidenciando uma tendência de autopreservação num ambiente cada vez mais movido por números, agora que os grandes estúdios são, em essência, grandes corporações de mídia.
Uma delas, porém, trilhou o caminho contrário. Fundada como empresa de tecnologia, a Apple passou o ano bancando lançamentos cinematográficos pomposos, que mais tarde abasteceriam sua plataforma de streaming.
Entre os filmes mais elogiados do ano, e sob a grife Scorsese, "Assassinos da Lua das Flores" foi a Cannes e a várias salas ao redor do mundo, e agora passa pela etapa de compra e aluguel no sob demanda antes de, enfim, chegar aos assinantes do Apple TV+. Caminho parecido será trilhado por "Napoleão", de Ridley Scott.
Outra plataforma que é um streaming, mas tem investido em lançamentos nos cinemas é a Mubi, que saiu comprando vários dos destaques dos principais festivais internacionais do ano. Em Cannes, arrematou Almodóvar; em Veneza, Sofia Coppola.
O festival francês, aliás, premiou pela terceira vez na história uma mulher com a Palma de Ouro. Justine Triet viu seu "Anatomia de uma Queda", um drama de tribunal que inverte noções de gênero, ser um dos longas mais comentados do ano, e sua estrela, Sandra Hüller, fez fama para além das fronteiras alemãs, onde nasceu.
Brasileiros também saíram premiados de Cannes, que distribuiu o prêmio de melhor filme de estreia nas mostras paralelas para "Levante", de Lillah Halla, e o troféu da Um Certo Olhar para "A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora. Trama sobre os krahôs, a obra coroou um ano de forte presença de indígenas diante e atrás das câmeras.
Foi um longo ano. Tão longo quanto os seus lançamentos cinematográficos. Ao menos essa foi a percepção de muita gente, que reclamou de durações como as de "Oppenheimer" e "Assassinos da Lua das Flores", que passaram das três horas, e até das de filmes mais populares, como "Guardiões da Galáxia Vol. 3" e "Velozes e Furiosos 10", com cerca de duas horas e meia cada.
O ano de 2023 pode até estar chegando aos finalmentes, mas as tramas e tendências que lançou não dão sinais de estarem perto de esgotar seu tempo de duração.
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