Cena de "Curupira - O Demônio da Floresta". Crédito: Carlinhos Pereira/Divulgação
Era véspera de Halloween. Enquanto uns corriam às lojas de fantasia atrás de chapéus de bruxa, capas longas e dentes pontiagudos, outros faziam chacota, pedindo que comemorassem o Dia do Saci --esta sim, diziam, uma festa brasileira. Mas havia quem discordasse. Será, afinal, que o saci realmente pertence ao povo brasileiro? Ou será que, como o curupira, é uma figura indígena da qual somos acusados de nos apropriar?
Para compartilhar um look diferente no Instagram, talvez esses questionamentos não fossem tão importantes. Cada um se vestiu do que quis e seguiu o baile. Mas são problematizações que, vira e mexe, ressurgem e causam alvoroço nas redes sociais, principalmente no campo da arte, que está resgatando, agora também em obras voltadas ao público adulto, cuca, saci e outras figuras que crescemos vendo no "Sítio do Picapau Amarelo".
É que nunca esteve tão em alta o debate sobre apropriação cultural, com questionamentos carregados de subjetividade e discordância entre o que a arte pode ou não retratar e, talvez mais importante, como deve retratar.
Carlos Saldanha foi o primeiro cancelado, quando pôs cuca, saci, curupira e iara numa investigação policial em "Cidade Invisível", da Netflix. Era absurdo, disseram internautas e ativistas indígenas, produzirem uma série protagonizada por crenças dos povos originários sem a colaboração de gente do meio à frente ou atrás das câmeras --isso sem contar as mudanças no cânone, como pôr a iara em água salgada.
Mas Saldanha e sua "Cidade Invisível" não foram os únicos. Erlanes Duarte, o diretor de "Curupira - O Demônio da Floresta", sofreu críticas parecidas. O filme, que acaba de chegar a plataformas de streaming, transforma o protetor das florestas numa figura sanguinária.
Na história, o personagem decide caçar um grupo de casais que aporta de catamarã numa praia isolada e desrespeita a natureza, atirando garrafas de cerveja na areia e brincando de arremessar uma tartaruga uns para os outros, como se o animal fosse uma bola de vôlei.
Ninguém havia assistido ao filme, mas o trailer e o subtítulo do longa bastaram para irritar ativistas indígenas. "Os brancos, como sempre, tratando seres espirituais indígenas como 'demônios'. É assim com os povos negros. Conosco, não fariam diferente. Absurdo!", escreveu no Twitter Emerson Pataxó, liderança jovem do povo de mesmo nome.
"O folclore não tem dono. Ele é de todos", respondeu o diretor, em conversa com a reportagem. "A discussão que se gerou em torno do tema foi importante para aprendermos a respeitar mais as diferentes óticas que existem em relação ao folclore brasileiro, mesmo que o filme não tenha tido essa intenção."
É uma visão compartilhada por Luís da Câmara Cascudo, que viveu no século 19 e até hoje é considerado pela academia como o maior folclorista do país. Em "Geografia dos Mitos Brasileiros", uma de suas principais obras, Cascudo relembra eruditos que filiam o curupira aos mitos asiáticos, dizendo que a criatura veio para a América nas invasões pré-colombianas, tendo descido da Venezuela para as terras brasileiras.
A opinião, entretanto, entra em conflito com a de boa parte das lideranças indígenas contemporâneas. Se em 1560 o padre Anchieta escrevia que o curupira atacava os indígenas --"dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os"--, hoje ele é tido por alguns povos como uma entidade sagrada, como Jesus Cristo é para os cristãos, de modo que, em sua visão, retratá-lo como um demônio mortífero é considerado ofensivo.
O problema é o próprio termo folclore, que surge de visões coloniais, a de Anchieta entre elas, sobre as crenças e o modo de vida dos povos originários. É o que diz Olinda Yawar Tupinambá, jornalista por formação e cineasta por vocação, que dirigiu "Kaapora - O Chamado das Matas", um curta-metragem que explora a relação dos povos indígenas com a terra e sua espiritualidade. O filme estreou há cerca de um ano na mostra Vexoá, na Pinacoteca de São Paulo, e agora percorre festivais de cinema.
"Assim como a educação, a arte continua folclorizando os indígenas. A palavra folclore foi uma forma que o homem branco encontrou de diminuir a cultura dos indígenas numa coisa que, embora supostamente faça parte da cultura brasileira, é menos importante, porque Deus continua sendo só um, o cristão. As entidades indígenas, no folclore, são só historinhas para crianças."
A cineasta, que em paralelo à carreira no cinema desenvolve projetos de recuperação ambiental na terra de seu povo, diz compreender que a liberdade artística deve ser respeitada, mas há de se ter cuidado. "Você pode criar em cima de outras culturas. Eu mesma farei isso no futuro, mas com respeito. Ninguém vai aceitar, por exemplo, um filme que demonize Deus, embora, se a gente pegar a 'Bíblia', tenha muita coisa para criticá-la."
E qual seria, então, o limite entre a liberdade de expressão e o respeito?
"O bom senso", ela diz, fazendo coro à avaliação da artista Janaina Wagner, também jornalista e cineasta, que produziu um curta-metragem sobre curupira --a curupira-- como parte de seu doutorado, desenvolvido numa residência artística num estúdio de artes contemporâneas na França, o Le Fresnoy.
Embora seja mais experimental e contemplativo, fugindo à estrutura hollywoodiana de cinema, "Curupira e a Máquina do Destino", que ainda não chegou às salas de cinema, explora um enredo semelhante ao do filme de terror que gerou polêmica na internet.
Filmado na Transamazônica, uma estrada aberta à força na ditadura militar que escoa madeira ilegal de áreas protegidas, o curta disseca a relação entre a pobreza, a exploração da natureza e os demais conflitos que margeiam a rodovia, que de repente são entrecortados pela curupira. A personagem, porém, não é retratada como um monstro.
Por não ser indígena, Wagner redobrou os cuidados. Viajou até São Gabriel da Cachoeira, cidade localizada a quatro dias de barco de Manaus, lugar em que convivem 24 povos indígenas e "onde a visão folclorizada não chegou", para ter acesso ao que "as fontes primárias" dizem sobre curupira. A produção, aliás, é estrelada pelos moradores da região, que muitas vezes trabalhavam sem roteiro.
"Por qualquer lugar que eu andava, para todos com quem conversava, eu pedia licença. Trabalhei para que meu filme fortalecesse a luta e o discurso dos povos indígenas", diz. "Foi uma jornada difícil em termos logísticos, porque é difícil de chegar, são pessoas difíceis de se aproximar sem repetir atitudes colonizadoras, mas uma vez que você tem interesse, tudo está ao seu alcance."
Foi, de certa forma, o que tentou fazer um grupo de cineastas que filmaram na capital paulista "Skull - A Máscara de Anhangá". Embora tenha como protagonista um monstro que usa uma máscara vinda do anhangá, e não o anhangá em si, o filme explora a visão que os jesuítas tinham sobre a entidade, outro protetor da floresta, que pode assumir formas diferentes.
"A presença da máscara do anhangá representa quase que uma vingança contra os colonizadores, ou seja, os opressores", diz Armando Fonseca, que dirigiu o longa-metragem com Kapel Furman.
"Skull", que entrou em cartaz nas plataformas de streaming após ter percorrido festivais, não recebeu críticas negativas na internet. Os diretores foram até uma tribo indígena localizada na capital paulista, por intermédio de uma espécie de diplomata, para apresentar suas ideias e "pedir autorização".
"A gente perguntou a eles o que podíamos fazer, quais palavras podíamos usar. A prioridade deles, confesso, era outra. Era não serem chacinados pelo governo numa passeata em frente à prefeitura. Mas eles nos ajudaram", diz Furman.
Por um lado, o cancelamento na internet pode não impactar no sucesso de uma produção. Mesmo tendo sofrido uma enxurrada de críticas, "Cidade Invisível", por exemplo, ficou entre os títulos mais vistos da Netflix em 40 dos 190 países em que está disponível, o que lhe garantiu renovação para uma segunda temporada.
Por outro, o cuidado que cineastas como Wagner, Fonseca e Furnan dizem ter tido é ilustrativo de que sofrer um cancelamento não é pouca coisa. Se antes Monteiro Lobato passava incólume, tendo inclusive esculpido no imaginário brasileiro a imagem de entidades como o saci, seus contemporâneos precisam ter mais cuidado, diz Olinda Tupinambá. "O descontentamento dos indígenas não é de hoje. É que a internet nos deu voz, e calado a gente não vai ficar."
- CURUPIRA - O DEMÔNIO DA FLORESTA
- Produção: Brasil, 2021
- Direção: Erlanes Duarte
- Elenco: Di Ramalho, Myla Arau e Lary Mourão
- Classificação: 16 anos
- Onde: disponível no iTunes, Apple TV+, Google Play, YouTube Filmes, Vivo Play, Now e Looke
- Preço: R$ 14,90
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