Como 'Volta por Cima', nova novela das sete, devolve os olhares da Globo à periferia

Com elenco formado majoritariamente por negros, a dramaturgia busca ser um espelho mais preciso do espectador brasileiro

Publicado em 30/09/2024 às 10h04
A partir da esquerda, no sentido horário, Fabrício Boliveira, Jéssica Ellen e Amaury Lorenzo e Isadora Cruz, em cartaz da novela 'Volta por Cima', da Globo

A partir da esquerda, no sentido horário, Fabrício Boliveira, Jéssica Ellen e Amaury Lorenzo e Isadora Cruz, em cartaz da novela 'Volta por Cima', da Globo. Crédito: Divulgação

Os sobrados com tijolos cheios de reboco e lodo, sinal de uma construção que nunca terminou, parecem fazer parte da cidade cenográfica construída pela Globo para a novela "Volta por Cima", que estreia nesta segunda-feira na faixa das sete da TV Gazeta. Mas eles são da vizinhança suburbana que rodeia os estúdios da emissora, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Das janelas, os moradores podem acompanhar a história, escrita por Claudia Souto, em primeira mão, conforme ela é gravada. Ainda que não tenha sido criada com esse objetivo, essa interação simboliza a conexão que a Globo quer restabelecer com as periferias, seu público principal.

A trama gira em torno de uma empresa de ônibus, a Viação Formosa, onde trabalha o patriarca da família protagonista, Lindomar, interpretado pelo rapper MV Bill. O primeiro capítulo acompanha seu último dia antes da aposentadoria. Ao fim do trajeto, ele passa mal, e o ônibus acaba pendurado no fim de uma área desativada do elevado da Perimetral, uma via central da cidade.

São muitos os elementos que traduzem a simplicidade almejada pelo folhetim, do figurino --composto por peças que são chaves para qualquer trabalhador brasileiro, caso da calça legging para as mulheres-- à trilha sonora, que deixa gêneros como o pop, unânime nas trilhas da Globo, para aderir ao samba, o ritmo que mais toca no Rio de Janeiro.

"Volta por Cima", aliás, é batizada em homenagem ao clássico homônimo de Beth Carvalho, que também é tema da abertura da novela, em gravação de Alcione e Ludmilla. Outros clássicos do samba, como "O Que É, O Que É?", de Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, dão o tom dos personagens, que nunca perdem a esperança.

Dessa forma, a Globo pode criar uma conexão com o público talvez desconectado do luxo ostensivo no ar em "Mania de Você", na faixa das nove, e sua Angra dos Reis, no litoral fluminense, habitada por corpos cheios de músculos que se preocupam mais com sexo e vingança e menos com o trabalho.

Aliás, a trama, escrita por João Emanuel Carneiro, não tem feito muito sucesso --com média de 21 pontos no PNT, o Painel Nacional de Televisão, do Kantar Ibope, "Mania de Você" tem se aproximado de um empate com "Família É Tudo", que será substituída agora por "Volta por Cima" às sete, e "No Rancho Fundo", em sua reta final na faixa das seis.

O empate, impensável para um passado não tão distante, quando as novelas das nove atingiam 40 pontos de audiência, tem se tornado uma constante. "Vai na Fé", exibida às sete no ano passado, também superou, em diversas ocasiões, "Terra e Paixão", que estava no ar na faixa nobre.

"Volta por Cima", assim como "Vai na Fé", é um espelho mais preciso do espectador, a começar por seu elenco, formado em sua maior parte por atores negros, assim como o Brasil, que tem como maioria absoluta de sua população pretos e pardos, segundo o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, realizado há dois anos.

"É uma história de povão, de pessoas simples e comuns, então tem gente se identificando mesmo antes de ir ao ar. Recebi um vídeo de um motorista de ônibus do Rio Grande do Sul que assistiu à chamada da novela e me mandou uma mensagem no Instagram", diz MV Bill, que nasceu na Cidade de Deus, na periferia da capital fluminense, e foi por muito tempo ele próprio um crítico da televisão à moda antiga, que não refletia a periferia, em músicas como "Para de Babar".

Além de MV Bill, o elenco conta com outros atores negros, como Jéssica Ellen, no papel de sua filha Madalena, Fabrício Boliveira, um fiscal de ônibus por quem ela se apaixona, e quase todos que os cercam. Os brancos estão concentrados nas famílias em decadência da história, como os irmãos Belissa, papel de Betty Faria, Joice, interpretada por Drica Moraes, e Gigi, vivido por Rodrigo Fagundes, um trio que não perde a pompa mesmo sem a riqueza que tiveram outrora.

Não é a primeira vez que a Globo volta suas câmeras para a periferia, mas agora as lentes não estão mais atrás de um filtro que faz tudo parecer meio cinzento, desbotado e enferrujado. A pobreza e as dificuldades que ela impõe, em outras palavras, não estão mais em foco, algo que se reflete bem nos sets de filmagem.

"Nosso bairro, Vila Cambucá, é uma junção de muitos subúrbios cariocas, como Madureira e Marechal Hermes. Mas a intenção é se comunicar com o subúrbio do Brasil inteiro, porque a maneira de viver nesses lugares é muito parecida", afirma Claudia Souto, que está na Globo desde os anos 1990 como roteirista. Ela estreou como autora principal em "Pega Pega", há sete anos, e depois assinou "Cara e Coragem", exibida no ano retrasado, ambas às sete.

"É uma novela realista, mas exibida entre dois jornais -o local e o Jornal Nacional-, que já fazem com que a realidade difícil invada a casa dos nossos espectadores, então queremos contar a história de uma forma leve, colorida e com comicidade", acrescenta o diretor artístico André Câmara.

"Os personagens poderiam fazer parte da vida de qualquer espectador, principalmente se falarmos do público principal da televisão aberta, que são as classes C, D e E. Estamos trazendo o povo para o primeiro plano."

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