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Publicado em 3 de outubro de 2024 às 18:20
Um momento decisivo na carreira de todo comediante é quando a plateia se vira contra ele. Públicos hostis fazem parte do humor desde a sua origem - para alguns, isso é um pesadelo; para outros, o propósito é despertar a ofensa no espectador.
O diretor Todd Phillips é deste segundo grupo. Suas comédias, que incluem "Se Beber, Não Case", de 2009, têm apreço por esse passo além, beiram ao incorreto e deixam vítimas. Isso explica a lógica - e os méritos - de "Coringa: Delírio a Dois", que lança agora para contestar o original de 2019, o maior hit da sua carreira.
Essa réplica soa como uma desfeita, já que Phillips parece ter encarado o sucesso de "Coringa" com a alegria de quem foi ferido por uma lança na garganta. A aclamação do primeiro filme, do Leão de Ouro ao bilhão de dólares, trabalhou contra a obra, que mirava a ira de seu público com o estado do mundo.
A revolta do original assim foi diluída a um meme, uma "coringada" fofa que trocava o chiste ácido pela imagem do palhaço dançando nas escadarias. Essa desfiguração vira ofensa séria para "Delírio a Dois", que investe contra o próprio público.
O filme lembra o gesto típico do comediante ofendido com quem não entendeu sua piada, disparando insultos para levar tomatadas. O que chama a atenção é Phillips frustrar fãs e detratores em igual medida. Ao desagradar a gregos e troianos, ele abre caminho para a sequência despertar alguma reação que não seja a dos braços abertos e da mente fechada.
A sequência enfileira uma série de recusas que orgulhariam qualquer troll de redes sociais, a começar pela trama, que trata do julgamento do protagonista Arthur Fleck, vivido por Phoenix, com um desprezo evidente pelo processo.
A inevitabilidade do tribunal na história ensaia desde o início uma discussão dos crimes do palhaço, tema perfeito para a autocrítica do original - que foi acusado de incitar a violência. Enquanto a promotoria da cidade argumenta a pena de morte para Arthur, a defesa tenta colar a ideia de múltiplas personalidades. O Coringa cometeu os atos do filme anterior, debate a advogada do detento, e Arthur seria outra vítima.
O réu, por sua vez, está mais interessado em Lee, papel de Lady Gaga, uma detenta do asilo penitenciário onde aguarda o tribunal. Eles se encontram nas aulas de canto da instituição, o que incentiva o lado musical do filme. Pelas canções, Arthur revela ao público o seu estado emocional, muitas vezes dedicado à paixão pela garota.
O segundo "Coringa" segue no entorno destes dois registros, o filme de tribunal e o musical, que ilustram a nova espiral de loucura do personagem. Mas ele, de propósito, passa longe da explosão de fúria, subvertendo a expectativa do público. Arthur dessa vez tem recaídas pontuais como Coringa, e para isso passa ainda uma hora em torpor com os medicamentos que toma na prisão.
Mas a crítica à violência, aqui, também não anula os feitos do original. As mortes são reduzidas a zero, mas Phoenix de novo apanha bastante, em especial dos carcereiros. A revolta do Coringa surge nos números musicais, tímidos na dança e simbólicos nos acessos de fúria e de paixão.
O azar de Arthur é que o seu amor por Lee aos poucos se revela uma fria daquelas. Entendemos que a moça manipula o pobre coitado - como muitos dos seus defensores, ela ama o Coringa pela sua promessa de caos, mas percebe Arthur como um frágil ninguém.
No divórcio entre as duas personalidades, a continuação usa bem o vai não vai de suas intenções para recusar a satisfação imediata. Quem espera uma nova catarse sai da sessão tão frustrado quanto quem entra no filme pronto para jogar pedras.
O filme é quase uma antítese aos tempos urgentes das redes sociais, como se visse nos bocejos e incômodos do público uma forma digna de cutucá-lo nos assentos.
A jogada é boa e lembra a do quarto "Matrix", de 2021, que também sacaneou parte do público para lidar com incômodos de seu legado. A diferença é que o segundo "Coringa" não tem um grande histórico para abordar, com cinco anos de distância para o original, e o tempo curto esgarça a intenção. Ele parece em muitos momentos o exercício de um ego raivoso, tão reacionário quanto o primeiro capítulo.
O que é curioso, porque só nessa posição o novo filme já oferece muito mais que o "Coringa" de 2019. Se o anterior tinha desespero em posar de sério, o da vez sobra em tiradas espertas que sabotam o espectador. Ele também nunca cai em um tédio absoluto, o que ajuda.
Então se Arthur em um momento vira o líder da revolução, abraçando o circo midiático contra ele, a história logo depois o humilha e castra em agressões pérfidas. Quando Lee parece pronta para estourar no palco, Lady Gaga reduz o tom da atuação a uma tragada melancólica do cigarro.
Dança nas escadarias de Phoenix e Gaga? Que nada, isso é só para a publicidade. O auge do filme mesmo está em um dos depoimentos do tribunal, uma cena de humilhação do Coringa que acaba se voltando contra ele.
O filme tem tanto descaso pela audiência que o sentimento é de que Todd Phillips espera a má bilheteria. A abertura, um desenho animado feito por Sylvain Chomet de "As Bicicletas de Belleville", resume as intenções finais da obra. Nela, Arthur é humilhado pela própria sombra, que rapta a identidade do Coringa para si e o deixa nu na multidão.
Convenhamos, não é isso que as pessoas esperam da sequência de uma história que mata um apresentador ao vivo na TV e deflagra caos nas ruas.
Como toda boa provocação, o segundo "Coringa" está fadado ao fracasso, varrido para debaixo do tapete aos gritos de "confuso" e "inconsistente". Se este for o caso, ponto para Todd Phillips, que enfim consegue a reação que queria ao fazer esses filmes.
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