Cauã Raymond interpreta o ex-imperador do Brasil em "A Viagem de Pedro". Crédito: Vitrine/Globo Filmes
Fugindo do estigma de galã, Cauã Reymond escolhe a dedo seus papeis no cinema e, assumindo riscos, prova que amadurece cada vez mais como ator. Foi assim no polêmico "Piedade", de Cláudio Assis, onde protagoniza uma intensa cena de sexo com Matheus Nachtergaele, e em seu novo projeto, "A Viagem de Pedro", em que personifica Dom Pedro I em um momento de loucura e impotência. A obra está em cartaz nos cinemas do Espírito Santo.
No papel, Reymond mostra uma entrega e visceralidade poucas vezes vista em sua carreira. Aplaudido por sua performance após exibições na Mostra de São Paulo e Festival do Rio, no ano passado, e no tradicional Indie Lisboa 2022, Cauã, e seu amargurado monarca lusitano, pode levar o país a tão sonhada indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, que não vem desde 1999, com "Central do Brasil".
"A Viagem de Pedro", afinal, foi um dos seis pré-selecionados para representar o Brasil no prêmio da Academia de Hollywood. Juntam-se ao filme de Laís Bodanzky na disputa; "Marte Um", de Gabriel Martins, considerado o favorito; "A Mãe", de Cristiano Burlan; "Carvão", de Carolina Markowicz; "Pacificado", de Paxton Winters (uma zebra que pode surpreender); e "Paloma", de Marcelo Gomes. Um deles será anunciado no próximo dia 9 como o representante oficial do Brasil na premiação de 2023.
Em entrevista coletiva para promover o lançamento de "A Viagem de Pedro", da qual "HZ" participou, Laís Bodanzky afirmou que a disputa pela indicação será bem acirrada.
"Sempre escrevo meus filmes para a seleção, especialmente por acreditar na visibilidade do prêmio. Esse ano, vemos uma safra de longas que acentua a diferença de linguagens da nossa produção. Estamos, sim, com um cinema brasileiro mais diversificado. Logicamente, isso é fruto de políticas públicas de incentivo que tivemos há vários anos", acredita a realizadora, autora dos excelentes "Como Nossos Pais" e "Bicho de 7 Cabeças".
Expectativas à parte, Bodanzky faz de "A Viagem de Pedro" uma verdadeira obra de arte, com esmerados figurinos e direção de arte e planos fechados, reiterando o tom sufocante de sua história.
O longa brasileiro nos remete a produções recentes de cineastas consagrados, como Pablo Larraín ("Jackie" e "Spencer"). A ideia é basicamente a mesma implementada pelo diretor chileno: fazer uma biografia disruptiva, abusando do intimismo para descontruir personagens históricos.
"Nossa ideia sempre foi desmistificar Dom Pedro I e seu viés heroico, forma como ele quase sempre é mostrado nos livros de história, cinemas e produções para a TV. O filme mostra um imperador frágil, doente, sofrendo de impotência, epilepsia e à beira da loucura. Um homem atormentado por seus fantasmas e que não conseguia esconder seu racismo estrutural e masculinidade tóxica", afirma Cauã Raymond, participante do bate-papo. O ator, aliás, também é produtor do projeto e convidou pessoalmente Laís Bodanzky para assumir a direção.
REALIDADE
Mas, afinal, qual a história de "A Viagem de Pedro"? Situada em 1831, a trama é centrada no trajeto de navio feito pelo imperador após fugir do Brasil rumo à Europa.
Odiado pelos brasileiros, especialmente por suas ideias liberais e progressistas, retorna a Portugal para tomar o trono que fora usurpado por seu irmão, Dom Miguel, no embate que ficou conhecido como Guerras Liberais, que terminaram em 1834, com vitória de Pedro. Inseguro e visto como estrategista militar, o monarca não era benquisto no Brasil e em terras lusas.
A bordo de um fragata inglesa, o ex-imperador (que abdicou do trono em favor do filho, Pedro II) surge fragilizado, numa verdadeira desconstrução do mito ufanista que aprendemos nas aulas de história.
"Havia pouco material retratando essa viagem, o que me deu liberdade para escrever o roteiro (feito em parceria com Luiz Bolognesi e Chico Mattoso), sem pretensão de fazer um registro histórico. Parti da ideia de produzir um filme crítico, atual, mostrando também a importância dos negros escravizados. Muitos foram apagados dos livros. Nossa ideia era dar luz, voz e vez a esses personagens", adianta Bodanzky, que, em seu script, deu relevância a figuras pouco lembradas, como a segunda mulher do monarca, Amélia (vivida pela atriz portuguesa Victoria Guerra), soldados ingleses, escravos e negros libertos.
"A Viagem de Pedro": filme descontroi imagem do imperador vista nos livros escolares. Crédito: Vitrine/Globo Filmes
"Queria um Dom Pedro com um olhar feminino", acrescenta Cauã. "Mostrar um homem real, com defeitos, bem distante do estigma de herói que é estampado nas estátuas", detalha o protagonista, fazendo uma analogia com uma frase dita pelo ator norte-americano Denzel Washington.
"Tem uma frase dele que me inspirou: 'Vivemos fantasmas dos sonhos que não colocamos em prática'. Sob essa ótica, tentei criar um grande pesadelo para a história de Dom Pedro I. Pensei em uma 'viagem' em sua mente atormentada. Expus sua paixão pelas mulheres e pelos filhos, mas também a relação machista com as esposas (tanto Amélia como Leopoldina, interpretada pela alemã Luise Heyer)", explica Cauã Raymond que, curiosamente, interpretou o personagem em uma peça de teatro escolar no Ensino Fundamental, durante a infância.
"A Viagem de Pedro" chega aos cinemas nacionais próximo às comemorações do bicentenário da Independência do Brasil. "É uma simples coincidência, mas é uma oportunidade para tecermos um olhar crítico sobre a nossa história e avaliarmos que muitas questões sociais do nosso passado são refletidas nos dias atuais", complementa Laís Bodanzky.
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