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Publicado em 10 de maio de 2022 às 11:10
Sangue fresco passeia pelo corpo musculoso de Alexander Skarsgard. A cor rubra salienta os gomos de sua barriga e jorra da carnificina que se desenrola à sua volta. Machados são enterrados nas cabeças de homens, mulheres são separadas dos filhos e casas ardem em chamas enquanto o ator, com seus cabelos loiros manchados de sujeira e morte, realiza uma fantasia infantojuvenil.
Sueco, ele sempre sonhou em dar vida a um viking, o que foi possível com "O Homem do Norte", que chega agora aos cinemas brasileiros. Dirigido por Robert Eggers, que caiu nas graças da cinefilia com o terror indie "A Bruxa", de 2015, o filme bebe da mesma fonte mística e trágica que "Hamlet", de Shakespeare -ambos foram inspirados na lenda escandinava de Amleth.
"O Homem do Norte" acompanha a saga do personagem-título em sua busca por vingança. Filho de um rei viking -papel de Ethan Hawke-, ele testemunha o próprio tio atravessar uma espada no pai e, ainda criança, foge para não ter o mesmo destino. Ele promete retornar um dia para se vingar e para salvar a mãe -Nicole Kidman, que já foi mulher de Skarsgard em "Big Little Lies"-, amadurecendo e ganhando músculos no exílio.
Músculos esses que o ator já tinha, mas precisou realçar com uma rotina de exercícios e boa alimentação. Tudo para fazer jus a suas raízes vikings, uma cultura da qual se aproximou ainda cedo, quando passava os verões na casa que seu bisavô construiu em Olândia, ilha no mar Báltico que é hoje lugar de descanso de muitos desses guerreiros, com suas pedras funerárias desabrochando do solo.
"Eu assistia aos filmes sobre vikings dos anos 1960 com o meu pai quando era criança", diz ele, sobre o também ator Stellan Skarsgard. "Parte do motivo para eu fazer 'O Homem do Norte' é porque eu notei que esses filmes começaram a ficar datados. Eu queria contar a história desses guerreiros de forma imersiva, atualizando o que descobrimos sobre eles mais recentemente e com mais tecnologia."
Os deuses nórdicos ouviram suas preces e o puseram no caminho de Robert Eggers, que havia acabado de terminar "O Farol" e, com a fama recém-conquistada, tinha um orçamento robusto nas mãos para elevar seu horror sobrenatural a níveis epopeicos. Ele se encantou pela "paixão ardente" de Skarsgard por vikings e definiu seu primeiro grande projeto.
O orçamento na casa dos US$ 90 milhões -cerca de R$ 416 milhões- de "O Homem do Norte" foi motivo de bonança e também preocupação para o cineasta americano. Se por um lado ele pode expandir o universo do oculto com o qual brincou em orçamentos de US$ 4 milhões e US$ 11 milhões de seus filmes anteriores, por outro teve sua visão criativa podada pela pressão de estar fazendo um "grande filme de entretenimento com muita ação e aventura".
Entre as concessões que Eggers detestou ter que fazer está a proibição de mostrar o pênis de seus atores, que em determinada cena se digladiam completamente nus, enquanto a câmera faz uma complexa coreografia a fim de não mostrar nada que incomode moralistas.
Por mais brutal e trágico que "O Homem do Norte" seja, este também é um filme sensual, que dá espaço para Skarsgard fazer amor com Anya Taylor-Joy de conchinha, em meio à natureza, enquanto as estrelas do céu tornam o ato quase ritualístico, sagrado e libertador.
Descoberta em "A Bruxa", a nova it girl de Hollywood e aclamada protagonista de "O Gambito da Rainha" repete a parceria com Eggers num papel também envolto em magia, como par romântico e aliada de Amleth em sua busca por vingança. Ele a conhece quando chega às terras de seu tio diabólico, aparentemente como prisioneiro de guerra, passando a trabalhar ali com o benefício do anonimato trazido pela passagem do tempo.
Com o orçamento vieram estrelas do mais alto escalão. Além de Kidman e Hawke, também estão no elenco Willem Dafoe e a cantora Björk, há duas décadas longe das telonas. E o casamento entre essa Hollywood de grana e glamour com o jeito intimista e obscuro de Eggers agradou -o agregador de críticas Rotten Tomatoes resumiu o filme como uma "expansão do escopo do cineasta sem sacrificar seu estilo pessoal".
"A escala era tão enorme que nós tivemos que preparar tudo com cuidado. Você não pode ter imprevistos num set com centenas de figurantes, cavalos, galinhas e dublês", diz Eggers sobre a nova experiência. "Por outro lado, estamos falando de Shakespeare, todo mundo conhece a história ou por 'Hamlet', ou por 'O Rei Leão'."
"Então nós pudemos nos concentrar na parte mais mitológica desse universo sem correr o risco de perder o público. A lenda original de Amleth não tinha todos os elementos que eu gostaria de ver num filme definitivo sobre os vikings, então nós acrescentamos coisas como uma incursão surpresa, dracares, um grande funeral. Nós tiramos tudo o que pudemos das nossas pesquisas."
Dessa forma, "O Homem do Norte" foi crescendo visualmente e se aproximando do horror sobrenatural de Eggers, bem como de temas já visitados por ele em "A Bruxa" e "O Farol" -há, por exemplo, uma certa escatologia, com arrotos e peidos que tiram o tom erudito que uma adaptação shakespeariana normalmente teria, como a recente "A Tragédia de Macbeth".
Há menos sutileza do que nos filmes anteriores, mas tudo para alçar o longa ao patamar de "épico" que Eggers e Skarsgard, que também produz, tanto queriam. As incursões vikings são sempre brutais e a violência oscila entre a repulsa e o erotismo.
Quando guerreiros vikings começam a cair mortos numa aldeia, seus cidadãos decidem sacrificar uma garota para apaziguar os deuses. Eles a amarram de forma complexa e caprichada, fazendo com que ela pareça muito mais uma adepta do shibari -técnica japonesa em que se amarra o parceiro por prazer- do que alguém prestes a ser devorado pela fúria divina.
A vítima feminina, em contraste com a virilidade pulsante do protagonista, prova que este é um filme ambientado em tempos falocêntricos e patriarcais, o que fez com que "O Homem do Norte" caísse no gosto de supremacistas brancos antes mesmo de sua estreia -algo que Eggers abomina, mas foi incapaz de impedir.
Grupos extremistas têm se apropriado de símbolos da cultura pop que exaltam a masculinidade e suas origens brancas europeias, de "O Senhor dos Anéis" a "Game of Thrones".
"O Homem do Norte" ainda tem um agravante estético. Basta lembrar o descamisado que invadiu o Capitólio americano depois que Trump perdeu a reeleição nos Estados Unidos -seu peito é coberto por tatuagens que aludem à cultura nórdica e a cabeça, por um chapéu de pele animal, como o lobo que Skarsgard veste no filme.
Eggers vem lamentando a associação e disse até que se tornou "alérgico" à cultura viking quando viu "O Homem do Norte" cair nas graças das pessoas que idolatram esse "estereótipo do macho". O cineasta só queria fazer o que mais gosta, se deleitar e tecer provocações com o esotérico.
"Eu não sei dizer por que o oculto e o místico me encantam tanto, você teria que checar com o meu psiquiatra", brinca ele, dizendo em seguida que nasceu na Nova Inglaterra, região americana que abriga locais de fama sobrenatural, como Salem. "As fazendas em ruínas e os cemitérios que compõem a paisagem de lá certamente me moldaram de alguma forma, e, como toda boa criança americana, eu via muito 'Star Wars', mas sempre preferi o Darth Vader ao Luke."
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