Quando "Queer as Folk" chegou, era tudo mato - pelo menos em termos de representação LGBTQIA+ no audiovisual. Criada por Russell T Davies, a série estreou em 1999, quando um pudico selinho entre dois homens mostrado na tela podia causar comoção e render registros na imprensa.
A série quebrou tabus com a proposta de dar protagonismo aos gays e mostrá-los sem pudores em cenas de sexo ousadas, antes reservadas aos casais heterossexuais. O sucesso de público e crítica logo fez com que fosse produzida uma versão americana, que estreou no ano seguinte e teve cinco temporadas.
Agora, uma nova versão, tenta atualizar as discussões pautadas pela série, levando em conta os avanços e gargalos que a comunidade experimentou nessas mais de duas décadas. Os dois primeiros episódios chegam ao Brasil no domingo (31), pelo serviço de streaming Starzplay.
O criador e produtor executivo Stephen Dunn lembra de ter assistido às primeiras versões escondido dos pais, com o som da televisão no mudo. "Foi a primeira vez que fui exposto ao universo queer", afirma em bate-papo com jornalistas. "Como adolescente, foi muito importante e empoderador para mim."
Apesar de gostar muito do original, a opção foi por mostrar a interação de um novo grupo de amigos, desta vez na cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos. Na trama, Brodie (Devin Way) tem uma relação complicada com Noah (Johnny Sibilly) e é o melhor amigo da transexual Ruthie (Jesse James Keitel). Esta, por sua vez, está tendo uma filha com a namorada e trabalha na escola onde estuda o não binário Mingus (Fin Argus), que tem o sonho de ser drag queen.
"Não queríamos refazer algo que já foi tão bem feito no passado", comenta Dunn. "Era muito importante para nós mostrar uma cidade diferente e ter um novo elenco, porque queremos contar novas histórias em um novo tempo. Essa foi a base da série."
Porém, como parte dos telespectadores observou quando a série estreou nos Estados Unidos, alguns dos arquétipos dos protagonistas anteriores foram aproveitados. "Nós começamos em um espaço similar, com algumas dinâmicas de personagens que ecoam a versão original", admite o criador. "Você vê algumas referências, mas nós vamos levar a história para outra direção."
Para Devin Way, seu personagem até lembra em algumas coisas o Brian Kinney, vivido por Gale Harold, na primeira versão americana, mas logo as diferenças ficarão claras. "São dois caras confiantes e muito autocentrados, mas na nossa versão meu personagem é logo abalado por algo muito grande, então ele precisa aprender como continuar existindo", diz o ator.
Ele também entregou que um personagem de uma das versões anteriores faz uma participação ainda na primeira temporada. "É mais um indício de que não são as mesmas pessoas, já que eles existem no mesmo universo", explica.
REPRESENTATIVIDADE
Dunn conta que também achava importante que a nova versão avançasse na bandeira da representatividade. Uma das críticas mais comuns feitas ao original - a de que boa parte dos personagens gays eram interpretados por heterossexuais cisgênero - foi sanada.
"Para nossos papéis principais, nós queríamos atores queer", afirma. Outros personagens, como familiares dos protagonistas, foram escolhidos entre simpatizantes da causa, como as atrizes Kim Cattrall, que interpreta a mãe de Brodie, e Juliettte Lewis, que aparece como a mãe de Mingus.
Nova versão de "Queer as Folk" estreia neste domingo (31) . Crédito: StarzPlay
"Mesmo que alguns dos atores fossem heterossexuais, é importante lembrar que, naquela época, ainda existia um estigma muito grande em interpretar personagens gays", lembra Johnny Sibilly. "Então precisamos agradecer a esses aliados que tomaram a frente de contar essas histórias, mesmo que isso pudesse significar o fim da carreira deles."
"Acho que agora, por termos mais atores queer que são conhecidos ou estão tentando escrever seus nomes na indústria do entretenimento, é importante permitir que eles próprios possam contar suas histórias", avalia. "Há um senso de verdade e um lugar de fala que são importantes de serem vistos pelo público dessa forma, não como uma fantasia que você põe e depois tira."
Dunn conta que tentou elevar isso à máxima potência, explorando uma série de categorias que são pouco lembradas até dentro da própria comunidade. Ele diz que entre suas cenas favoritas estão uma orgia com deficientes físicos e uma cena de nudez frontal de Ruthie, quando ela está retomando o controle da própria sexualidade.
"Eu queria dar visibilidade a membros da nossa comunidade que se sentem sub-representados não apenas na televisão, mas nos espaços em geral", afirma. "Temos transexuais, não binários, cadeirantes... são pessoas que às vezes são sub-representadas até em espaços queer, como bares e paradas que não levam em conta a acessibilidade."
A trama deslancha com um tiroteio em uma balada, que vitima várias pessoas. A sequência foi inspirada na tragédia que ocorreu em 2016 na boate Pulse, em Orlando. "Eu me encontrei com sobreviventes porque queria fazer isso de forma respeitosa e honesta", conta o criador. "Não mostramos a violência em si, mas como a comunidade se cura depois de um evento dessa magnitude."
"Essas cenas me acionaram vários gatilhos, mas elas existem por uma razão", afirma Devin Way. "São histórias parecidas com as que aconteceram e ainda acontecem, então é uma grande responsabilidade, mas também uma grande oportunidade de mostrar às pessoas que é possível se reerguer apesar do ódio que é direcionado a elas. Foi difícil, mas fiquei muito orgulhoso de participar."
Os atores contam que bem mais fáceis foram as diversas sequências de sexo e nudez - marca registrada da franquia. "Tivemos uma coordenadora de intimidade que garantiu que tudo fosse feito em um ambiente seguro, saudável e com todos sabendo até onde queriam ir", conta o intérprete de Brodie. "Quando havia cenas assim, apenas as pessoas essenciais ficavam no set."
Ele diz que ficava mais à vontade quando havia outros atores sem roupa na gravação do que quando eram cenas em que ele estava sozinho e nu. "Eu brincava perguntando se mais alguém não queria ficar pelado também", conta.
Johnny Sibilly conta que se divertia bastante nessas gravações e que sempre pedia para ver como a cena estava ficando. "Você sabe que está ficando bonito e, de certa forma, é quase uma libertação", avalia. "É tipo: 'Bom, esse aqui sou eu'. É como se uma parede fosse derrubada. Depois que as pessoas te viram tão vulnerável, acho que você já pode considerá-las da família."
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