Tom Cruise em Cannes se diz um Gene Kelly do perigo. Crédito: Reuters/Folhapress
Quando ele começou, no início dos anos 1980, não oferecia exatamente o porte tradicional de galã - era baixinho, o nariz um tanto abrutalhado e os dentes desalinhados, apesar do sorriso largo. Mas havia ali uma inegável eletricidade que incendiava os papéis do início de carreira do americano nascido Thomas Mapother 4º, recém-saído de um seminário da ordem franciscana.
Agora, às vésperas dos 60 anos, Tom Cruise compareceu ao Festival de Cannes com status de último remanescente de uma espécie particular de superastro hollywoodiano, do tipo que não há mais diante da crise do "star system".
Ele veio mostrar "Top Gun: Maverick", continuação de um dos maiores sucessos de sua carreira, e receber uma homenagem por 41 anos de trabalhos que já o fizeram virar militar, espião, roqueiro, vampiro, samurai, rei da coquetelaria, piloto de caça, motorista de carro de corrida, além de salvar o mundo mais de dez vezes.
"Eu tenho consciência de que sou privilegiado", disse o ator a uma plateia de cerca de mil pessoas, sobretudo jornalistas afoitos, que se acotovelaram para entrar numa das maiores salas de cinema da mostra para ouvir Cruise.
"Eu sempre quis pilotar aviões, viver aventuras, fazer filmes. Eu era do tipo sonhador, sempre escrevia minhas histórias. Comecei a trabalhar cedo cortando grama, limpando neve. Uma parte do dinheiro dava à minha família, a outra usava para ir ao cinema."
Ao longo de uma hora de conversa, repetiu várias vezes as palavras "aventura", "privilégio" e insistiu que desde cedo estudava meticulosamente o jeito de fazer filmes, que sempre buscou conversar com todo tipo de gente envolvida nas produções e que seu sonho sempre foi viajar, "não como turista, mas para conhecer culturas diferentes".
Fez ainda uma defesa enfática do cinema diante do avanço do vídeo sob demanda. Ele é, aliás, um dos pouquíssimos de seu meio que ainda não se renderam às séries. Disse que jamais permitiria que "Top Gun: Maverick", que chega na semana que vem ao Brasil, estreasse no streaming, a despeito das incertezas da pandemia.
"Isso não era nem uma questão. Nunca foi. Temos que ter respeito pelas pessoas que trabalham com o cinema. E com isso quero dizer todas as pessoas, incluindo o pessoal que vende pipoca. Sabe, eu vou aos cinemas até hoje. Entro na sala disfarçado e assisto aos filmes como qualquer um."
Para falar de como Cruise chegou ao ponto de ditar as regras na indústria dessa forma, é necessário rememorar a trajetória de sua carreira, mote da maior parte da sua conversa com a imprensa.
Se nos anos 1980 ele empilhou tipos tempestuosos, os tais jovens elétricos em longas como "Toque de Recolher", "Vidas sem Rumo", "A Chance" e "Negócio Arriscado", a segunda metade da década o viu emplacar parceria com diretores do primeiro time e atores do primeiro escalão.
Sob a batuta de Martin Scorsese, duelou com Paul Newman nas mesas de sinuca de "A Cor do Dinheiro", viveu o irmão egoísta de Dustin Hoffman em "Rain Man", encarou Jack Nicholson em "Questão de Honra" e se juntou ao manifesto antibélico de Oliver Stone com "Nascido em 4 de Julho".
A ganância yuppie e a toada patriótica dos anos Reagan o fizeram vestir a camisa em "Top Gun" e "A Firma" para que, nos anos 1990, já se tornasse um rosto onipresente.
"Missão Impossível", que ele protagonizou em 1996, marcou a virada de quando assumiu pela primeira vez o papel de produtor. "Achavam que seria uma péssima ideia", disse, sobre o que ouviu quando aventou a ideia de levar a série homônima dos anos 1960 para os cinemas. A franquia multimilionária já está em seu oitavo filme, anunciado para 2024. Foi quando ele aprendeu outros truques, diz, o de protagonizar as próprias cenas de ação no lugar de dublês.
"Sim, eu sei que fazer isso é perigoso. Mas não se pergunta por que Gene Kelly dança em todos os filmes dele, né? Se eu faço um musical, eu tenho de dançar", afirmou, dando a entender que não haveria como ser diferente num blockbuster cheio de adrenalina. "Em todos os filmes que eu faço, a minha grande preocupação é como mergulhar o público na trama e como entreter."
No Festival de Cannes, sua conversa teve ares um tanto laudatórios. Seu talento foi exaltado, mas se passou bem longe dos aspectos mais picantes ou controversos de seus 41 anos de trabalho.
Nenhuma palavra sobre cientologia, sobre pular no sofá de Oprah Winfrey sem o menor sentido ou sobre seus relacionamentos ruidosos com Katie Holmes e Nicole Kidman --com quem, aliás, a falta de química acabou se tornando lendária no set do sensual "De Olhos Bem Fechados", de Stanley Kubrick.
Nem mesmo sobre os esporros que ele deu em duas pessoas que conversavam a menos de dois metros nas filmagens do sétimo "Missão Impossível", rodado durante a pandemia.
Cruise foi ovacionado por mais de um minuto, não sem antes do público de Cannes chegar a cogitar que ele faria uma de suas entradas triunfais, a bordo de um caça ou mesmo caindo de paraquedas no telhado. Nada disso.
Mas, horas depois, no tapete vermelho de "Top Gun: Maverick", os aviões cortaram os céus da cidade pintando o horizonte de azul, vermelho e branco --da França ou dos Estados Unidos, vai saber.
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