• Joana Pellerano

    Joana Pellerano é professora e pesquisadora dos estudos da alimentação. Aqui, serve contos e crônicas para acompanhar bolo com café (ou a dupla favorita do seu estômago).

Bolo de aniversário: a disputa

Publicado em 04/03/2024 às 16h26
Bolo de aniversário com velas acesas

Um bolo é a faixa que anuncia a chegada e já inaugura a largada seguinte. Crédito: Shutterstock

Todo ano quero fazer bolo de aniversário. Há de se comemorar mais uma volta na lua, com as quedas nas crateras, os saltos que desafiam a gravidade, os passinhos do Michael Jackson. Um bolo, penso, é a faixa que anuncia a chegada e já inaugura a largada seguinte. Mil e uma utilidades.

Nesse momento, começa na cabeça uma festa que frequento desde criança. Ao som de hits top 40 das últimas décadas e meia dúzia de balões, convivem convidados às vezes novos, às vezes cativos, sorrisos que disfarçam uma competitividade feroz. Todos sabem por que estão ali e querem garantir a honraria maior da noite, a coroa, o troféu. O clima pode ser cortado em fatias.

De canto de olho, avisto o bolo de coco vestido de papel-alumínio. Ele se acomoda no interior de uma maquete de isopor fantasiada de bolo para em seguida saltar dela feito uma vedete na hora do parabéns. O sóbrio bolo de especiarias balança a cabeça em reprovação a tamanho espalhafato.

Intercepto o olhar sensual do chocolate, sempre à disposição como um pretinho básico da confeitaria. Ao lado, o de cenoura ri largo, dançando tão perto que acaba se enroscando na cobertura do amigo. A dupla não consegue esconder beicinhos ciumentos quando o red velvet, com seu cheiro de carro novo e sotaque carregado, rouba pedacinhos do seu holofote.

Quando a disputa esquenta, o bolo de morango veste o chantili como um casaco de pele falso e ameaça ir embora antes do parabéns. O de fubá com goiabada mantém o olhar tranquilo de quem sabe que seu lugar está garantido, se não hoje, muito em breve. Paciência é lição que vem com a idade, algo que tenta ensinar para o primo bolo de rolo, mas esse não para quieto para aprender.

O cheesecake se revolta ao ouvir que nem deveria estar nesse páreo, sentindo na pele o preconceito de não se encaixar. Recebe uma cotovelada carinhosa do pudim, alguém que já superou a necessidade de enxergar tudo em preto ou branco.

Chegou a hora. A festa fica prestes a se transformar em uma gaiola da morte onde apenas um sairá vivo. Eu, júri e juiz, me agonio com a iminência de tamanha violência.

As lágrimas se engrossam enquanto explico que não posso suportar outro embate. Todos são merecedores, não há como optar por apenas um. Os convidados, já enfadados, dão de ombros. É assim todo ano, já sabem. Saem em fila maldizendo a anfitriã e bolando estratégias para o ano seguinte.

Há de se admirar a persistência de meus doces amigos. Depois de tanto tempo, seguem esperançosos de que finalmente nessa volta na lua deixarei a indecisão de lado.

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