Carta de um cozinheiro ao Papai Noel

Publicado em 21/11/2024 às 12h21
Carta de um cozinheiro ao Papai Noel

No caso do peru, ainda tolero a imposição em nome das piadas de duplo sentido. Crédito: Subbotina Anna/Shutterstock

Prezado Senhor Claus,

Espero que esta mensagem lhe encontre bem. Mas, a bem da verdade mesmo, o senhor tem sido um baita de um pai ausente para milhares de brasileiros. Por aqui, muitos ainda aguardam ao menos uma rápida visita sua no apagar das velas de dezembro.

Tudo bem que a maioria de nós não possui uma chaminé (porque entramos pelo cano), mas já perdi as contas de quantos colegas da gastronomia, ano após ano, forjaram neve com algodão e penduraram em árvores de plástico em nome da hospitalidade.

Confesso que acho tudo tão cafona quanto chamar frango de Chester e cobrar quatro vezes mais por isso. Aliás, esse é o meu ponto nevrálgico de hoje: se o senhor não vem nos visitar, pare de querer opinar sobre o que temos que comer.

Nunca fui ao Polo Norte e dispenso toda sorte de frieza porque sou capixaba e isso já me congela de antipatia. Mas imagino que o terroir por aí não seja propício para plantar caju – o que lamento muito, porque tanto a polpa quanto a castanha dele são muito mais versáteis do que as nozes. Também não concordo em ter que sair de mercado em mercado procurando por meia dúzia de cerejas no país da jabuticaba.

No caso do peru, confesso que ainda tolero a imposição em nome das piadas de duplo sentido. Na prática, o ressecamento da carne e o laçarote vermelho nas coxas chamam mais atenção do que o próprio sabor. O senhor há de convir que ele só faz sucesso num país como o meu porque aprendemos a recheá-lo com farofa – que consegue deixar tudo sempre mais interessante. O mesmo aconteceu com o presunto metido a tender, depois que foi apresentado ao abacaxi.

O que me salvou dessa festa nos últimos tempos foi mesmo a nossa brasilidade. Aos poucos, comecei a convidar o salpicão para a ceia, já que o considero um amigo para todas as horas.

Gosto da transgressão dos que veem, nessa agitação comercial, a oportunidade para fazer um baita churrasco: com feijão tropeiro, vinagrete, pão de alho e tudo mais que for de direito.

Dos religiosos, me interessa saborear a contradição em celebrar uma narrativa de simplicidade a partir da ostentação. Tudo bem, comida de ocasião também veste roupa especial, e até o arroz nessa época se enfeita com passas (o que muito me agrada).

Aliás, se o senhor é mesmo tão influencer, já passou da hora de pensar em uma pegada mais vegana para essa comemoração – e isso inclui, além da comida, também substituir o sofrimento das renas pela precarização do trabalho humano nos serviços de entrega... ficar acenando sentadinho em trono de shopping é fácil, quero ver trabalhar em escala 6 x 1 na praça de alimentação.

Talvez meu único respeito por você ainda seja motivado pela tempestade de rabanadas, besuntadas com açúcar e canela, que acontece em padarias nesta época. Não acho que tenhamos sido colonizados bonzinhos nos últimos tempos, mas ao menos essa herança apetitosa a aculturação luso-violenta precisava ter nos deixado.

Sem mais delongas, o meu sincero pedido deste ano é para que o senhor realmente não apareça por aqui e nos deixe terminar essa translação em paz - preferencialmente respeitando nosso desejo de criar uma nova tradição de trocadilhos natalinos do que é pavê e “pá comer” também.

Afetivamente,

Murilo.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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