"Que delícia esse curry!", ele disse entusiasmado. Eu, querendo impressionar, larguei um "receita de família", sendo que tinha comprado o tempero pronto e só misturado com frango, cenoura, cebola e pimentão.
Era fase de paquera, a gente entra numa vibe de incrementar o currículo. Achei que era uma soft skill interessante: não só sei fazer curry, mas carrego com maestria a tradição familiar.
Corta para alguns meses de relacionamento. "Faz aquele curry de novo?", eu ouvia semana sim, semana também, e dava altas desculpas pra ver se o infeliz esquecia da história. Não esquecia. "Se não quiser cozinhar me passa a receita, eu faço", ele ousou. Tive que inventar que não podia, segredo, e minha mãe ia me esconjurar lá de onde estiver.
Casamos. À essa altura tive que ceder ao preparo mensal do curry. Última sexta do mês, mesa posta, vinho branco. Ele queria sábado, mas na minha casa dia de curry sempre foi sexta, não dá pra mudar, imagina se minha tia ia deixar curry no sábado (quando ele ficava em casa o dia todo e queria cozinhar também).
Quando tivemos filhos a situação complicou. Precisou entrar em cena um juramento no leito de morte da minha vó de que só as descendentes estariam aptas a receber a receita secreta. A prole, masculina, ia precisar focar em outros preparos.
Na minha casa, dia de curry sempre foi sexta, não dá pra mudar. Crédito: Shutterstock
Foram anos de especiarias compradas e descartadas discretamente. Embalagens guardadas no fundo da bolsa para lixos distantes. Cozinha trancada para evitar olhares curiosos que chegaram mais cedo do trabalho, do treino de futebol, da faculdade. Estoques escondidos dentro de uma mala velha, com cadeado, no fundo do armário. Medo de que a fabricante descontinuasse o tempero pronto.
O mais velho acabou de ligar. Vem na sexta com a esposa porque tem uma novidade. Quer curry, claro. A moça também: já tive que repetir incontáveis vezes ao longo desses anos que infelizmente só mulheres da família mesmo, sabe como é. A honra da minha bisavó depende disso.
A nora não aceitou o vinho hoje, mas os olhos brilharam extrabrilhantes quando viu a travessa fumegante de curry. E aí eu ouvi as palavras. As que queria e não queria ouvir em partes iguais. Grávida. Menina. A primeira neta.
Emocionado, o mais velho pegou na minha mão e disse que o curry ia seguir na família. Gerações de mulheres estavam agora abençoando aquele útero cheio de energia feminina, mãos minúsculas que dominariam o preparo da receita secular estavam se formando em tempo real, alimentadas pelo curry, poesia genética. Meu marido, em prantos, comeu três pratos.
Escrevo porque meu tempo está acabando. A menina acabou de falar a primeira palavra. Meu passaporte está em dia e as malas, prontas, se dirigir a noite toda acordo na Argentina. Mas vi seu TikTok sobre seu vizinho que teve um surto súbito de amnésia e apagou 30 anos de carpintaria da memória. Mistério médico, certo? Preciso do telefone dele. É um caso de vida ou morte.
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