• Murilo Góes

    Gastrônomo e pesquisador das culinárias brasileiras que também cozinha umas palavras

República do Homus e a pacificação dos estômagos

Publicado em 31/03/2025 às 07h00

Imagine poder transitar em um território que não é determinado por fronteiras nacionalistas e nem por instituições religiosas. Uma república habitada apenas por comedores de homus, também conhecidos como homus sapiens.

Pois bem, fui convidado pelo artista israelense Yifitah Peled para participar, no último dia 22 de março, da República do Homus, uma exposição performativa na qual aconteceria o lançamento da pedra fundamental para uma nova sociedade nada fundamentalista.

A ideia era oferecer uma degustação gratuita de homus para alimentar o desejo de paz com a pacificação dos estômagos que fossem visitar o Contemporão - um discreto espaço independente para artes contemporâneas localizado na cidade de São Paulo.

Em uma tarde acalorada por encontros, o homus foi a comida mediadora na criação de vínculos generosos, a partir de seis diferentes receitas exclusivamente criadas ou reproduzidas para o momento.

Junto comigo, estavam o casal formado entre o curador Peled e a pesquisadora da alimentação Elaine de Azevedo, com sua receita capixabesca de homus com coentro, além da dupla composta pela performer Síssi Fonseca e o professor Hugo Fortes, com a receita afetiva de homus de sua tia Rosa.

Também entre os primeiros republicanos, Neka Menna Barreto, a banqueteira mais “shazam” que já conheci, com as boas energias do seu vibrante homus de beterraba defumada, além das receitas criativamente coloridas e fermentadas do chef Fred Caffarena, junto com as memórias "homurísticas” apresentadas no receituário da educadora Ariela Doctors.

Participantes da exposição República do Homus, realizada em março de 25 no espaço Contemporão, em São Paulo

Criadores das seis receitas apresentadas na República do Homus, em São Paulo. Crédito: @aliciaviu

Fiz minha singela contribuição à República com uma receita de homus de jiló. O vegetal mais vitimizado pela polarização “amor x ódio” (pelo menos para mim) foi abraçado pelo grão-de-bico na tentativa de suavizar os traços amargos que marcam sua forte personalidade.

Comidas e pessoas têm muito em comum e é pela linguagem figurada que as lógicas se conectam para conseguimos reconhecer, por exemplo, comentários ácidos entre metáforas deliciosas ou doces palavras entre considerações amargas.

Pessoas desgostosas vomitam insultos e cospem no prato que comem, enquanto outras engolem sapos ou preferem digerir algumas verdades. Brincar com palavras, imagens e sabores nos permite cruzar fronteiras e encarar a vida em banho-maria para conscientemente experimentar uma trajetória mais picante da nossa viagem por esse planeta.

Jiló direto do pé, por Murilo Góes, na exposição República do Homus

Jiló direto do pé. Crédito: @aliciaviu

O homus de jiló surge da tentativa de fazer novos homus sapiens provarem o amargor característico, mas sem a amargura dos preconceitos estabelecidos pela falta de outras experiências mais positivas. Pretendeu colaborar no desenvolvimento de tolerâncias entre as culturas de sabores, a partir de combinações entre as nossas próprias histórias e outras tantas narrativas que cercam os imaginários em uma coletividade.

Nativo da África Ocidental (ao que tudo indica), o jiló, nessa receita, atravessa o Atlântico para encontrar o amendoim; os ingredientes se conectam ao grão-de-bico, à pimenta preta e ao limão para, juntos, apontarem novos rumos frente à miscigenação de ideias.

Deixarei no final do texto os passos seguidos por mim para chegar ao resultado que foi servido ao público. Na República, todos os artistas, ativistas e cozinheiros também fizeram e distribuíram suas elaborações.

Os visitantes puderam levar para casa cada uma das receitas como mais uma lembrança desse momento. Mas foi na memória que, sem dúvidas, guardamos cada uma das interações que nos transportaram para esse território colonizado pela esperança de diálogos mais pacíficos entre as diferenças culturais.

A comida, essa danada, outra vez abriu caminhos para leituras de mundos e mostrou que tolerância também se constrói com faca afiada - desde que estejamos juntos numa cozinha. Parafraseando Luiz Gonzaga, em “Qui nem jiló”: saudade, o meu remédio é cozinhar!

Receita de novos rumos (ou homus) para o jiló

Rendimento: 6 porções

  • Ingredientes:
  • 4 jilós pequenos
  • 3 colheres de sopa de pasta de amendoim
  • 1 ½ xícara (chá) de grão de bico já cozido e sem casca
  • 2 dentes de alho
  • Suco de 1 limão (ou pelo menos 3 colheres de sopa do caldo)
  • 3 colheres (sopa) de azeite de oliva
  • Pimenta-preta a gosto
  • Sal a gosto
  • Cebolinha para finalizar (opcional)
Homus de jiló, por Murilo Góes

Homus de jiló. Crédito: Arquivo pessoal

Modo de preparo:

Encare o amargor do jiló em duas etapas (você pode adotar ambas ou optar por pelo menos uma - a depender da sua tolerância):

  1. A primeira etapa envolve procedimentos mais pacíficos de atenuação do sabor: corte os jilós em quatro partes e os acomode em uma vasilha com água suficiente para que estejam cobertos; adicione 1 colher de sopa de sal e misture para dissolver. Mantenha o banho de descarrego por, pelo menos, 20 minutos. Em seguida, descarte a água salgada e enxague os jilós.
  2. A segunda etapa envolve o processo culinário de branqueamento, que resulta numa eliminação mais bruta da identidade amarga: em uma panela, aqueça água suficiente para realizar uma imersão com os cortes do jiló. Quando ferver, adicione os pedaços e deixe cozinhar por cinco minutos. Na sequência, em uma vasilha com água bem gelada, transfira os cortes já cozidos. Quando estiverem totalmente frios, escorra e reserve.
  3. Descasque, fatie e refogue os dentes de alho em uma frigideira com um fio de óleo de girassol. Na mesma panela, adicione os jilós já manipulados e deixe cozinhar por mais dois minutos, apenas para que possam dourar levemente. Desligue o fogo e aguarde esfriar.
  4. No processador, junte o grão-de-bico, os jilós misturados com alho, a pasta de amendoim, o azeite de oliva e o suco do limão. Bata até formar uma pasta. Prove e tempere com sal e pimenta-preta a gosto.
  5. Se preferir um homus mais liso, acrescente água filtrada aos poucos, batendo a cada adição, até atingir a textura desejada.
  6. Transfira o homus para uma tigela e adicione um fio de azeite. Para contrastar com refrescância o amargor persistente, adicione cebolinha picada por cima. Sirva imediatamente ou leve para geladeira; o sabor também pode ficar agradável para consumo sob baixas temperaturas.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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