Ronaldo Fraga mostrou, em filme, sua coleção idealizada como uma homenagem à união entre essa indústria geradora de renda e a criação de moda. Crédito: Reprodução @ronaldofraga
"Fico feliz em ver que num espaço tão elitista como a moda, hoje é possível mostrar o trabalho das costureiras de Cidade Tiradentes".
A secretária de Cultura de São Paulo, Aline Torres, comemorava, nos corredores da São Paulo Fashion Week, o desfile armado na tarde desta quarta-feira (17) que exibiu os looks do projeto de capacitação conduzido pela prefeitura em conjunto com a semana de moda, o Cria Costura.
O espaço gigantesco da passarela, que agora serve como sala única de desfiles desta edição, não fora concorrido como o de horas depois, na apresentação cheia de estrelas de nível internacional da Torinno. Nem modelos profissionais tinha.
As próprias costureiras vestiram o próprio trabalho de meses, acompanhadas por um carrinho de som acoplado a uma bicicleta. Os looks, todos pretos, mostravam do que a mão é capaz, com variações de camisaria, recortes assimétricos e modelagem afiada para diferentes corpos.
O prefeito da cidade, Ricardo Nunes, fez coro na coletiva em que abraçou aquelas mulheres, e, como extensão do discurso de inclusão da secretária, festejou que "a moda não é mais como antes".
São visíveis os avanços da plataforma de desfiles, conquistados às turras após um grupo de modelos negras, fundadoras do coletivo Pretos na Moda, levantar a voz contra a falta de equidade racial. Também é claro o esforço da indústria em fazer ascender nomes fora do padrão elitista e europeizado que ainda é maioria tanto na frente das câmeras quanto por detrás, no chão de fábrica.
Mas as mudanças, muitas vezes, ainda aprecem trajadas de um pretenso discurso de inclusão. Logo após apresentação das costureiras que durou pouco mais de três minutos, Ronaldo Fraga mostrou, em filme, sua coleção idealizada como uma homenagem à união entre essa indústria geradora de renda e a criação de moda.
Parceira de décadas do estilista, a tecelagem Renauxview, de Santa Catarina, abriu as portas - e a carteira- para a ideia do designer mineiro em mostrar, com um elenco de personagens trans, casais homo e heterossexuais, além de pessoas de diferentes idades, um pedaço da história sobre a construção da moda nacional e como a colonização impactou no gosto estético do país.
Devidamente regado a chope, vinho e risos, o curta "Entre Tramas e Beijos" não mostrou, porém, a tentativa de boicote de um grupo de empresários catarinenses ao filme moderninho demais.
Segundo Fraga, o problema teria começado quando ele se negou, durante uma confraternização, em tirar uma foto com um dos industriais, abertamente simpatizante do presidente Jair Bolsonaro, publicamente criticado pelo estilista em suas redes sociais e nas coleções de cunho político.
O colorido das roupas e as estampas que remontam às décadas dedicadas a ilustrar flora, fauna e estetas nacionais não seriam suficientes para derrotar os sentimentos ruminados intimamente por uma parcela considerável daqueles com caixa disponível para bancar os sonhos da moda.
"Com esse mundo em escombros, se decidirmos refletir sobre tudo o que vivemos, não haveria passarela suficiente. Então, falo da roupa de luto e de festa, da vida e da morte", resume Fraga sobre a dualidade da extensa coleção feita em bases de jacquard.
Esse cenário polarizado intrínseco ao tempo encontra eco na escalação desse segundo dia de SPFW. Os abismos parecem definidos não apenas em quanto de tecido e rostos simétricos da TV uma marca consegue pôr no desfile, mas também sobre os propósitos de cada uma.
Nesse microcosmo irregular que é o Pavilhão das Culturas Brasileiras em época de desfiles, cabe, por exemplo, misturar o ideal de concreto espelhado de uma Dubai desejada pela elite e as areias de Los Angeles, como definiu Luis Fiod sobre a volta de sua grife Torinno ao evento.
Com um casting poderoso, que ia da atriz global Alinne Moraes à top Laís Ribeiro, de personagens de reality show ao "Gisele de calças", o modelo Marlon Teixeira, a marca desfilou uma fusão de moda urbana que é bem a cara do jeanswear nacional mesclada a uma imagem de festa para poucos.
E no fim das contas, a marca não se descola da realidade, porque é sobre isso que a moda com poder de barganha trata, mesmo que, em microfone aberto, diga o contrário.
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