• Rachel Martins

    Uma jornalista que ama os animais, assim é Rachel Martins. Não é a toa que ela adotou duas gatinhas, a Frida e a Chloé, que são as verdadeiras donas da casa. Escreve semanalmente sobre os benefícios que uma relação como essa é capaz de proporcionar

Animal silvestre em convívio humano e bem cuidado deve ou não ser apreendido?

Publicado em 28/03/2023 às 19h31
A Lei de Crimes Ambientais e o Decreto de Infrações Ambientais não permitem a posse de animais de origem ilegal sob guarda do infrator, ainda que esses animais sejam mantidos em boas condições

A Lei de Crimes Ambientais e o Decreto de Infrações Ambientais não permitem a posse de animais de origem ilegal sob guarda do infrator, ainda que esses animais sejam mantidos em boas condições. Crédito: Pexels

A aposentada Maria de Lourdes Ferreira, 62 anos, moradora de Campo Grande (MS), moveu uma ação de reparação de danos morais no valor de R$ 80 mil contra o governo do Estado. Em sua petição, ela sustenta que durante 22 anos cuidou de um papagaio, o Guri, que em 2019 foi apreendido e acabou morrendo menos de um mês depois no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras), que teria recebido uma denúncia de que o animal silvestre estaria sendo maltratado. Ou seja, após levado da casa de sua tutora, ambos, ela e o animal silvestre, segundo a ação, tiveram a saúde abalada. E um detalhe: a aposentada só ficou sabendo da morte de Guri um ano e sete meses depois de sua apreensão.

A aposentada Maria de Lourdes Ferreira teve a saúde abalada após seu papagaio, o Guri, ser apreendido depois de estar na sua convivência por 22 anos

A aposentada Maria de Lourdes Ferreira teve a saúde abalada após seu papagaio, o Guri, ser apreendido depois de estar na sua convivência por 22 anos . Crédito: Divulgação

Partindo deste caso, a coluna entrou em contato com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), com o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Espírito Santo (Iema) e com um advogado, especialista em Direito Animal e Direito Médico-Veterinário, Filipe Corrêa.

Afinal, um animal silvestre em convívio humano, já ambientado e bem cuidado, deve ou não ser apreendido?

Segundo o Ibama, a Lei de Crimes Ambientais (Lei 6905/1998) e o Decreto de Infrações Ambientais (Decreto 6514/2008) não permitem a posse de animais silvestres de origem ilegal sob a guarda do infrator, ainda que esses animais sejam mantidos em boas condições. Diversos estudiosos alertam que a permanência de animais nessa situação pode estimular indiretamente a procura por animais irregulares e o tráfico de animais silvestres.

O instituto alerta que por origem ilegal entende-se a captura na natureza; os animais silvestres procedentes do tráfico; procedência de criadouros clandestinos/irregulares; ou os animais silvestres recebidos por doação de amigos e parentes cuja origem se enquadra nos itens anteriores. Portanto, a única forma de possuir um animal silvestre legalizado é adquiri-lo de um criadouro ou estabelecimento comercial autorizado pelo órgão ambiental estadual/distrital.

Alimentação adequada

Já o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), por meio de servidores da Coordenação de Fauna, corrobora com o Ibama que nesses casos o agente público deve seguir as leis e normas vigentes, seja ele policial, que irá apurar o crime, ou servidor de órgão ambiental, que irá apurar as infrações administrativas. Somente o judiciário pode definir algo contrário, a julgar pela defesa apresentada.

O Iema alerta que o óbito de um animal silvestre apreendido pode ocorrer por diversas situações. “Ele pode ter recebido um tratamento inadequado durante toda a sua vida, como alimentação não condizente com a sua espécie ou recinto sujo e pequeno em que mal consegue se mover. Nesses casos, a simples remoção do animal pode trazer à tona problemas que ele já tinha e levar a sua eventual morte. É muito comum o agente ambiental encontrar, por exemplo, papagaios sendo alimentados com café com leite e pão, só comendo sementes de girassol, alimentos inadequados que podem causar diabetes, gordura no fígado, má-formação óssea, excesso de peso”, explica.

Além disso, os servidores da Coordenação de Fauna explicam que a maioria dos animais apreendidos conseguem ser reabilitados e devolvidos à natureza. Mesmo um papagaio estando há 22 anos com um tutor, pode ser ressocializado, quando finalmente passa a se reconhecer como pertencente a sua espécie. “É extremamente importante que a sociedade entenda que para um animal de origem ilegal, adquirido do tráfico, estar em sua casa, outros morreram”, alerta.

Segundo o Iema existe o programa Guardião de Fauna criado em 2020 através da IN 16-N/2020. É uma categoria de cativeiro onde pessoas físicas se inscrevem como interessadas em se tornar guardiões da fauna e são incluídas em uma fila de espera.

“A pessoa informa as espécies de interesse e o número de animais que tem condições de cuidar, lembrando que o número máximo é de cinco animais. Caso a pessoa tenha interesse em ultrapassá-lo deverá requerer autorização de manejo de fauna para a categoria Mantenedouro de Fauna”, ressalta.

Segundo o Instituto, quando surge um animal disponível para guarda, eles entram em contato com o interessado, respeitando a ordem de inscrição e as características do animal a ser destinado, e solicita o envio de toda a documentação pertinente. No caso da documentação ser aprovada, o animal é destinado.

“Após esses trâmites e a guarda ser autorizada, o guardião terá que enviar fotos do animal no local destinado à sua manutenção e um laudo de médico-veterinário atestando sua saúde uma vez ao ano. Vale ressaltar, ainda, que este animal não fica sendo propriedade do guardião, que recebe apenas a sua tutela, que é de posse do Estado”.

Legal X moral

O advogado Filipe Corrêa explica que a apreensão de animais fora dos requisitos legais permitidos pela legislação ambiental tem se tornado um tema em voga e em discussão de caráter social, que em muitos casos alcança a esfera jurídica para resolver questões que envolvem apreensão de animais pelas instituições competentes e a manutenção desses animais com seus tutores em decorrência do lapso temporal de convivência. O fato, ressalta, é que existem dois lados de uma mesma moeda, em contraponto, com visões peculiares. O primeiro deles, explica o advogado, é o contraponto entre o legal versus o moral.

"Nessa ótica, é necessário analisar que as apreensões realizadas seguem a linha do chamado direito ambiental que entende que todo o animal silvestre que não for adquirido nos moldes da legislação vigente, incorre no cometimento de crime ambiental. Isso reflete a mais pura e cristalina ideia no tocante à luta contra o tráfico de animais, que sabemos se tratar de uma atividade lucrativa de grande impacto para o meio ambiente, promovendo a extinção, amiúde, de algumas espécies da fauna brasileira"

"Nessa ótica, é necessário analisar que as apreensões realizadas seguem a linha do chamado direito ambiental que entende que todo o animal silvestre que não for adquirido nos moldes da legislação vigente, incorre no cometimento de crime ambiental. Isso reflete a mais pura e cristalina ideia no tocante à luta contra o tráfico de animais, que sabemos se tratar de uma atividade lucrativa de grande impacto para o meio ambiente, promovendo a extinção, amiúde, de algumas espécies da fauna brasileira"

Filipe Corrêa

E de outro lado, ressalta, tem um ponto que é pouco vislumbrado e que está afeto à deficiência de informação e conhecimento da legislação ambiental fora dos grandes centros. “Ou seja, nas sociedades mais afastadas em que a hipossuficiência intelectual é quase uma questão cultural. Como aplicar a lei, dura e fria, em sociedades que mal detém o ensino fundamental? Como aplicar a legislação se não há um acompanhamento educacional para essa população? Como aplicar a legislação num ambiente que às vezes a aquisição de animais às avessas da legislação é uma questão cultural e que não necessariamente resulta do tráfico de animais?”.

Filipe Corrêa conta que, nesses casos, gosta de lembrar de seu saudoso avô paterno, que, com mais de 90 anos foi conduzido à autoridade policial por ter um passarinho preso em uma gaiola na varanda de sua casa que ficava no distrito de Ivaí, interior da Cidade de Muriaé, Minas Gerais.

“Meu avô mal sabia escrever o próprio nome. Nunca teve acesso a questões legais e ambientais. Sempre trabalhou na condução dos animais de uma fazenda. O local onde morava, sequer tinha acesso à internet. Ele não era um traficante de animais. Apenas não detinha conhecimento da legislação ambiental. Não tem exemplo melhor do que esse para exemplificar o contraponto entre legal versus moral. Não incentivamos o tráfico de animais. Mas, também, não podemos estabelecer uma conduta aleatória de inobservância de questões sociais. Cada caso deve ser analisado de forma detida”, salienta.

Outro contraponto, explica, é a analogia que deve ser feita entre o antropocentrismo versus o biocentrismo. “É inconteste que toda a legislação que trata sobre a matéria ambiental é antropocentrista, ou seja, parte da visão do homem que criou a lei e que passou a determinar o que pode e o que não pode em relação aos animais. O bem-estar animal é condicionado às decisões do ser humano naquilo que lhe pareça mais conveniente. Já o biocentrismo é o olhar ético e ponderado a partir da perspectiva do que é melhor para o animal num contexto macro, colocando de lado ou em segundo plano a conveniência do ser humano”.

Dentro desse viés, o advogado faz um questionamento. “Seria correta a apreensão de um animal com convívio de 22 anos sem considerar que ele já se estabeleceu em um ‘habitat’ que por mais que não seja o seu originário, passou a ser aquele em que foi bem cuidado? É correto priorizar o antropocentrismo contido em uma legislação fria em detrimento do biocentrismo que poderia levar em consideração o que é melhor para o animal? Afinal, a mudança abrupta do ambiente do qual esteve inserido por 22 anos é fator que pode contribuir para o seu adoecimento. Há quem diga que os animais ‘morram por saudade’”, alerta.

Outro ponto de conflito é o contraponto entre o ambientalismo versus o animalismo. O advogado ressalta que nesse caso se trata do conflito entre o antropocentrismo que permeia o ambientalismo e o biocentrismo que está afeto ao animalismo.

“Questões ambientais são avaliadas naquilo que o homem entende como correto. A fauna e a flora são observadas dentro desse critério antropocêntrico (conveniência do ser humano). Já o biocentrismo visa, acima de tudo, o bem-estar animal, tentando se sustentar no reconhecimento de direitos voltados aos mesmos, daí, a importância de se falar em animalismo ou direito animalista. Ele está em ascensão, mas não possui a mesma força política que desencadeou na criação da legislação que temos hoje para aplicação das questões ambientais”, afirma.

E em relação ao próximo contraponto que desencadeia a analogia entre o positivismo versus o naturalismo, Filipe Corrêa diz: “O Brasil é tipicamente um país de abordagem jurídica positivista, ou seja, tudo é regulado em legislação, é tipificado em leis, tais como o Código Civil, o Código Ambiental, entre outros. Já o naturalismo é aquilo que realmente ocorre com as mudanças sociais na prática. Neste ponto, temos o conflito de tudo o que é ditado pela lei em confronto com os costumes e a cultura específica de cada região deste país”, ressalta.

Para Filipe Corrêa, é necessário refletir sobre a necessidade de apreensão, ou não, de um animal – ainda que silvestre – que está comprovadamente inserido num ambiente que para ele é o seu “habitat” ao longo de muitos anos.

“Não seria o caso de estabelecer uma análise ao melhor interesse do animal visando a manutenção de sua saúde – considerando o sofrimento do mesmo pelo afastamento do convívio com pessoas que estavam inseridas em sua rotina – e de seu bem-estar em casos que não foi verificada nenhuma situação de maus-tratos e fora do típico tráfico de animais?”, avalia.

Mas os questionamentos não param por aí. “Será que poderia ser o caso de relativização da legislação ambiental para se estabelecer um olhar mais refinado sobre situações similares? Será que a legislação não poderia ser mitigada para conceder a posse responsável para estes tutores, considerando o melhor interesse da saúde emocional do animal? A posse responsável não ensejaria a fiscalização continuada a fim de analisar a ocorrência de eventuais situações de maus-tratos? Não se poderia, a partir daí, proceder à marcação e o acompanhamento do animal? Não seria o caso de afinar a necessidade de expansão do caráter educacional visando a conscientização de populações remotas e com hipossuficiência de entendimento da legislação vigente?”.

Para o advogado existe uma reflexão que precisa ser feita e ponderações que carecem de análise mais aprofundada. “São duas faces de uma mesma moeda e que não podem passar despercebidas pela sociedade atual e muito menos pela legislação pátria”, conclui.

Entenda a legislação

Ibama

A única forma de possuir um animal silvestre legalizado é adquiri-lo de um criadouro ou estabelecimento comercial autorizado pelo órgão ambiental estadual/distrital.

Segundo o artigo 3º da Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) nº 489/2018, animal de estimação é "espécime proveniente de espécie da fauna silvestre ou fauna exótica adquirido em criadouros ou empreendimentos comerciais legalmente autorizados ou mediante importação autorizada, com finalidade de companhia”. Acesse o site.

Iema

No âmbito administrativo, a Lei Complementar Estadual nº 936/2019, prevê que o uso não autorizado da fauna silvestre e exótica pode acarretar na aplicação de multa que hoje está em mais de R$ 4 mil. É importante saber que um animal sem a origem legal, isto é, não adquirido de empreendimentos devidamente autorizados, não pode ser legalizado junto ao infrator. Para explicar melhor, se uma pessoa acha um bem na rua ou no seu quintal, não passa a ser dela só porque encontrou. Ela deve procurar as autoridades competentes para que estas devolvam a quem é de direito.

No Espírito Santo quem autoriza o funcionamento desses estabelecimentos é o Iema. Caso a pessoa pretenda adquirir um animal proveniente de outro Estado e tenha dúvidas se este local está ambientalmente correto, basta entrar em contato com o Instituto para tirar as dúvidas.

Somente as espécies que constam do Anexo I da Instrução Normativa Iema nº 08-N/2022, não necessitam de autorização ambiental para criação e venda, as demais necessitam.

O que é necessário saber antes de adquirir um animal silvestre de estimação

Ibama

Sobre o que as pessoas precisam saber antes de decidirem ter ou não um animal silvestre e como adquiri-lo de forma legal, é importante abordar três pontos: Origem Legal; Marcação; e Posse Responsável.

Origem Legal: Animais silvestres são legais apenas se comprados em criadouros ou estabelecimentos comerciais autorizados para esta finalidade. Qualquer outro meio de obtenção é considerado crime ambiental, com multas que variam entre R$ 500 e R$ 5 mil por animal, acrescidos de pena de detenção de seis meses a um ano.

Antigamente, o documento que atestava a origem legal de um animal era a nota fiscal. Hoje esse papel é cumprido pelo Certificado de Origem do Sistema Nacional de Gestão de Fauna Silvestre (Sisfauna). Praticamente todos os estados aderiram ao sistema. As únicas exceções são os estados de São Paulo e o Amazonas. A autenticidade do Certificado de Origem do Sisfauna pode ser conferida a partir do código de controle do documento. Acesse o site.

Marcação: Todo animal silvestre adquirido em criadouro/estabelecimento autorizado deve possuir anilha ou microchip, a depender do grupo animal. Os critérios de marcação foram estabelecidos pela Resolução Conama 487/2018. Acesse o site

Posse responsável: A posse responsável é um termo amplo e que vem sendo internalizado aos poucos na sociedade brasileira, especialmente quando o assunto é a guarda de cães e gatos. Ela pode ser resumida como “o compromisso de fornecer condições adequadas à sobrevivência, nutrição, ambientação e bem-estar do animal silvestre durante toda a vida deste animal”. Assim, é recomendável que o aspirante a tutor de um animal silvestre estude as características biológicas da espécie, refletindo se posteriormente será capaz de atender às suas necessidades, se possui recursos financeiros e se poderá honrar este compromisso por um longo tempo.

Iema

É preciso estar consciente que algumas espécies podem não apresentar um ou outro atributo, como sociabilidade e mansidão comuns aos animais considerados “domésticos”. Dessa maneira, há espécies que têm potencial para a criação como animais de companhia e outras não, por isso nem todas as espécies podem ser autorizadas como animais de companhia.

Antes de adquirir um animal das espécies permitidas, é necessário avaliar as necessidades de cada uma para evitar transtornos futuros, ou mesmo garantir que o animal esteja nas melhores condições possíveis para cativeiro.

É importante considerar fatores como tempo de vida, alimentação adequada, tamanho do animal na idade adulta, tamanho e tipo de recintos e outros cuidados como iluminação e aquecimento.

Não adianta querer ter um animal “diferente” se não sabe o que ele come, o ambiente onde vive. Tudo precisa ser levado em conta, e deve ser realizada uma pesquisa razoável sobre o animal antes de qualquer desejo de compra.

Outro ponto que deve ser observado é que o animal não pode ser abandonado. Além de crime, a espécie solta na natureza sem qualquer critério pode ocasionar problemas sérios ao homem ou as demais espécies de animais que se encontram em vida livre, pois podem levar doenças, ou mesmo não serem nativas daquela área da soltura em questão.

Vale ressaltar ainda que a entrega aos órgãos ambientais em caso de não interesse em permanecer com os animais, gera custos à sociedade em geral, pois a reabilitação de um animal é custosa aos cofres públicos.

Espécies silvestres podem, ocasionalmente, transmitir zoonoses ou ser infectadas por elas. Então é essencial que haja o acompanhamento de médico-veterinário especializado para garantir a boa saúde desses animais.

Todas as informações podem ser encontradas no site do Iema

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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