Uma parte da colônia de gatos do Parque. São oito pontos de felinos no local. Crédito: Divulgação Fernando Furtado de Melo
A empresária Ilka Westermeyer Merçon, que faz parte do grupo “Gatinhos Pedra da Cebola”, está muito preocupada com a liberação de cães no Parque Pedra da Cebola, junto aos seus tutores, resolução que deve entrar em vigor brevemente através de um Decreto da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV). O grupo do qual faz parte atua junto a uma colônia de gatos formada há cerca de dez anos no local, quando começaram a chegar os primeiros felinos. Hoje, são cerca de 200.
“A chegada dos cães pode comprometer todo o trabalho que já estamos realizando com os gatos. Eles estão estabelecidos no local, a maioria nasceu lá, e nesse período sempre receberam alimentação, água e os tratamentos necessários para a manutenção da saúde, inclusive todos estão castrados. Nós usamos o modelo C.E.D - captura, esterilização e devolução. Lembrando que alguns são bem dóceis e permitem a aproximação de humanos, mas outros são bem ariscos. Isso significa que a adoção não seria possível para todos. Na minha opinião, mesmo os mais afáveis precisariam passar por um longo processo de socialização antes de qualquer adoção responsável”, garante. Ilka explica que todas as castrações foram realizadas com recursos próprios.
"Caso os cães sejam liberados no Parque, os gatos certamente vão ficar mais ariscos, dificultando nosso acesso a eles e a realização dos tratamentos que fazemos para manter em dia a saúde de todos. E no pior dos casos, esses felinos podem começar a aparecer mortos ou feridos em decorrência de ataques por parte desses cães"
Ilka Westermeyer Merçon
Segundo ela, em reunião com o Secretário Municipal do Meio Ambiente, Tarcísio José Föeger, ficou clara a preocupação do grupo. Para ela, mesmo que fosse possível retirar todos os felinos de lá, poderia acontecer o chamado “efeito vácuo”. “No parque todos os gatos estão com a saúde em dia, não têm FIV e FELV (todos testados), e são alimentados com ração diariamente pelo médico, especializado em neurologia, Fernando Furtado de Melo, também com recursos próprios. Então, trata-se de uma colônia controlada e saudável. Se a gente retirá-la do local, certamente outros gatos vão aparecer para preencher esse espaço, pois não serão mais expulsos pelos que vivem lá. Será que essa é a melhor opção?”, ressalta.
De acordo com a empresária, no caso do Parque, diante de todos esses fatos, a Prefeitura Municipal poderia deixá-lo de fora do Decreto, por essa peculiaridade da colônia de gatos. “Eles não pediram para serem abandonados ali. Os gatos, assim como outras espécies que vivem lá, como os patos e os faisões, são uma espécie invasiva, mas se estão no local merecem toda nossa atenção. Eles são livres ali, passeiam por todas as partes, seguem os visitantes, recebem carinho. Não somos contra os cães em parques, mas cada caso é um caso”, afirma.
Ela ressalta, ainda, que o programa do bem-estar animal de castração da Prefeitura Municipal é muito bom e já ajudou a realizar gratuitamente o procedimento em alguns gatos do parque. “Mas acho que eles podem contribuir mais em algumas frentes, porque ao fazer a captura, por exemplo, após a castração é necessário realizar a marcação na orelha do animal antes de retornarmos com ele para o local, o que facilitaria nosso trabalho, mas não temos recursos para isso. Além disso, já solicitamos diversas vezes câmeras de vigilância, estamos atrás disso faz anos. Acontecem muitos abandonos de felinos ali, e com o monitoramento seria mais difícil alguém se arriscar a fazer isso”, conclui.
Demanda da comunidade
O Secretário Municipal do Meio Ambiente, Tarcísio José Föeger, ressalta que frequentemente eles recebem demandas da comunidade questionando porque os parques urbanos da cidade não são abertos aos cães. “Nós não temos uma resposta efetiva para proibir a entrada dos mesmos nesses locais. Mas antes de tomar qualquer decisão e baixar o Decreto, ouvimos especialistas que pudessem contribuir tecnicamente para esta política pública que vamos implantar em todos os parques urbanos da cidade”, explica.
Tarcísio afirma que hoje o que mais se vê são famílias multiespécie, constituídas por humanos e seus animais de estimação, que realizam passeios com seus pets em vários lugares públicos de Vitória. “A gente sabe que o Parque é um caso específico, devido à colônia de gatos que se formou no local. Nós queremos continuar trabalhando juntos pelo bem-estar dos felinos estabelecidos lá, o Decreto traz regras rígidas para os tutores de cães, e qualquer deslize por parte deles, pode acreditar que a punição será estabelecida conforme a lei”, garante.
Para ele, não há motivo para proibir essa política pública, partindo de uma possibilidade de que os cães vão espantar os gatos ou atacá-los.
"E em uma reunião com o grupo 'Gatinhos Pedra da Cebola' deixei claro que caso venha a acontecer alguma coisa que esteja comprometendo o bem-estar dos gatos, nada impede de que a gente baixe outro Decreto proibindo novamente a entrada de cães no Parque"
Tarcísio José Föeger
O secretário explica que será feito tudo para que haja uma fiscalização eficaz, para que as regras sejam cumpridas, para fornecer orientação aos visitantes e, acima de tudo, um monitoramento via câmeras. “Inclusive, conforme o andamento, podemos até restringir algumas áreas, como os pontos onde estão estabelecidos os felinos, na área do parque. Mas primeiro vamos ver como tudo vai se desenvolver, antes de fazermos qualquer julgamento”, conclui.
O guardião dos gatos
O médico Fernando Furtado de Melo que cuida, atualmente, dos gatos do Parque, conta que viu os felinos há quase 6 anos. “Acabei retornando para alimentá-los. Estavam sempre famintos. E isso tornou-se um hábito. Nessa época, conheci uma das fundadoras do grupo ‘Gatinhos Pedra da Cebola’ e uma voluntária que já tratava de alguns deles estabelecidos na entrada, ao lado da Ufes, o que, aliás, faz até hoje”, conta.
Ele lembra que com o tempo, os gatos tornaram-se mais mansos e ficaram seus amigos. “Quando Ilka entrou no grupo, conseguimos agilidade para castrar todos e dar mais qualidade de vida a eles. Ela fez o grupo crescer. Graças a ela, temos a casa para lar temporário e todos os animais castrados”, enfatiza.
O médico Fernando Furtado de Melo diz que muitos dos gatos são mansos, mas outros são bem ariscos. Mas nunca atacam ninguém e como estão bem alimentados não caçam os outros animais. Crédito: Divulgação
Segundo ele, muitos gatos foram recolhidos e estão no lar temporário do 'Gatinhos Pedra da Cebola', por serem positivos para FIV e FELV. “Hoje, são oito colônias espalhadas no Parque, além de alguns que vivem sozinhos, como a gata Cléo e o casal Oskar e Furacão. Todos têm nomes. Não atacam ninguém. Infelizmente, diariamente aparecem gatos abandonados que precisam ser testados e castrados. E o grupo depende de doações para arcar com os custos. Gasto 75 quilos de ração por semana, além de sachês e patês. O custo é todo meu. Vou ao parque quatro vezes por semana, são duas horas de caminhada. Nos dias restantes, deixo ração com funcionários de jardinagem. Eles gostam dos animais e me salvam. Os gatos bem alimentados não caçam os outros animais do Parque”, conta.
Fernando corrobora com Ilka e solicita à Prefeitura Municipal que não libere os cães no Parque, que desde 1997, ano de sua inauguração, sempre proibiu a entrada dos mesmos. “Há mais de uma semana venho conversando com várias pessoas no local e na rua e até agora só uma concordou com essa autorização. O parque tem outras questões muito mais importantes a serem resolvidas, basta dar uma caminhada pelo local para enxergá-las. Os gatos já estão ali faz 10 anos, não é justo agora trazer cães aqui pra dentro, é um caso atípico que deve ser considerado”, resume.
E se fosse uma ave ameaçada? Haveria essa polêmica?
A médica-veterinária, fundadora do C.E.D. Brasil, Otávia Mello, explica que o maior risco com a liberação de cães no Parque não são os animais em si, mas os tutores. “Ainda existe no Brasil a cultura de passear com os cães sem coleira e/ou guia. Diariamente vemos situações como ataques de cães a cachorros menores, gatos, entre outros, justamente pela falta de conscientização dos humanos. Não há como garantir que, mesmo na guia, um cão não irá tentar perseguir os gatos, causando estresse nessa população que, até o momento, não possui contato frequente com cachorros”, garante.
Além disso, Otávia ressalta que a presença de cães também pode causar o deslocamento dos gatos para outras áreas dentro do parque, em uma tentativa de evitá-los (e o maior fluxo de pessoas), prejudicando não somente as ações dos cuidadores, mas também alterando a estrutura social dos felinos, os focos dentro da colônia e aumentando a possibilidade de conflitos por território entre os subgrupos existentes.
"Locais como o parque são chamados de pontos de abandono e possuem características bem marcantes para seu surgimento: um município sem uma política de manejo populacional efetiva; falta de conscientização dos munícipes em relação à guarda responsável e ausência de segurança adequada (além de monitoramento por câmera) nesses espaços públicos para coibir o abandono, que muitas pessoas esquecem que é um crime"
Otávia Mello
Além disso, ela alerta para o fato de que ao se realizar o controle reprodutivo dos felinos e oferecer a eles alimentação regular, pode-se diminuir a movimentação dos mesmos na área, restringindo, também, a possibilidade de predação e disseminação de resíduos. “Mas ainda assim, a presença de cães ou gatos em uma área verde, sempre causa impactos”, garante.
Para ela, nesse caso específico, o parque não deveria ser liberado para os cães. “Devem existir outros na cidade mais propícios para isso, sem colocar em risco o bem-estar dessa população de felinos, que já está em vulnerabilidade. É bom lembrar que dificilmente gatos de vida livre que cresceram com pouca tolerância ao contato humano podem ser socializados. A socialização é um processo longo e que precisa focar no indivíduo, o que é quase impossível em uma colônia tão numerosa. Enfim, gatos de colônia devem permanecer em sua colônia, principalmente os ferais e ariscos”.
Segundo ela, é bastante compreensível a preocupação dos voluntários do projeto “Gatinhos Pedra da Cebola” com a liberação de cães no Parque. “Será que estaríamos discutindo o assunto se, ao invés dos gatos, fosse uma ave ameaçada ou algum outro animal silvestre? Os gatos que foram abandonados no parque estão sobrevivendo a um infortúnio causado pelos humanos. E nós, como seres humanos, temos a obrigação moral de não tornar a vida deles, e de seus cuidadores, que investem não somente horas de seus dias, mas também afeto a esses animais, mais difícil do que já é”, conclui.
Não há uma fórmula mágica
Já o médico-veterinário, Fabricio Pagani, não vê nenhum problema para os gatos em si com a liberação de cães no Parque. “Os cães estarão controlados por seus tutores e respeitando as regras pré-estabelecidas para a boa convivência. Entretanto, vejo risco, sim, à saúde dos cães e suas famílias já que os gatos ali são de vida livre e, portanto, não tem controle sanitário e de trânsito absoluto e desta forma são possíveis transmissores de zoonoses”, explica.
Para ele, os gatos de vida livre presentes no local teoricamente podem trazer mais impactos negativos, do que propriamente os cães, à fauna silvestre. “Os gatos são predadores natos e podem buscar nesses animais silvestres parte de sua alimentação. Além disso, os felinos são considerados animais ainda não completamente domesticados, mantendo muito de suas características selvagens, dentre elas, a caça. Dessa forma, mamíferos, aves, répteis, anfíbios e insetos são predados podendo algumas dessas espécies serem completamente afastadas ou até extintas da região. Em resumo: tecnicamente, e pensando no meio ambiente, esses felinos são uma espécie invasora que não deveria estar lá”, garante.
Os cães, ressalta, controlados por seus tutores, podem até causar algum prejuízo à fauna local, mas, ao menos em tese, isso é raro de acontecer. “Os cães domiciliados, sobretudo em Vitória, são pets e não animais treinados para caça e mesmo aqueles que instintivamente podem ter comportamento de caça não devem fazê-lo, porque não estão famintos e não precisam buscar alimento ou, ainda, mesmo que tentem, o êxito será dificultado já que esses cães não possuem, em sua maioria, tal hábito. Mas, obviamente, o comportamento mesmo que instintivo de caça e ataque devem ser coibidos por meio de conscientização dos frequentadores e fiscalização do Poder Público, com penalizações aos infratores”. Segundo Fabrício, a questão é que os felinos estão lá, embora não deveriam estar
"Isso, inclusive, corrobora para que outras pessoas se sintam confortáveis em praticar o abandono de outros gatos no local, o que confere, por si só, crime de maus-tratos. Exatamente por essa cultura criada de que lá seria um ‘santuário dos gatos abandonados’ que mais e mais pessoas abandonam ali esses animais"
Fabricio Pagani
Ele afirma que trata-se de um problema complexo e não há uma "fórmula mágica” para a sua resolução. “Na minha opinião, esses gatos devem ser recolhidos pelo Poder Público e levados a local apropriado, sempre respeitando o bem-estar animal, recebam todos os tratamentos necessários, sejam abrigados em um local controlado e, posteriormente, possam ser adotados e viver saudáveis e felizes com suas novas famílias. E só depois disso, o Parque deve ser liberado para os cães”.
Fabrício, sugere também, a implementação de sistema de videomonitoramento com identificação facial e de placas de veículos em todo entorno do Parque, além de 24 horas de fiscalização por meio da guarda municipal e quando necessário a intervenção do poder policial para que as pessoas que abandonam animais ali sejam identificadas e punidas.
“É importante lembrar que apesar do Poder Público sabiamente não estimular o abandono de animais no local, sua histórica de passividade, quando o assunto é proteção animal, vem permitindo que ocorram tais abandonos. Felizmente, a situação ainda possui algum controle e não é pior, mesmo que não suficiente, graças a algumas pessoas abnegadas que entendendo tratar-se de uma situação grave, com recursos próprios e ajuda de outros, tentam amenizar a situação”, conclui.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.
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