El Misti é um dos vulcões da cidade de Arequipa no Peru. Crédito: JorgeAndres | Shutterstock
Três imponentes vulcões – El Misti, Chachani e Pichu Pichu posam exuberantes ao redor de Arequipa. A 2.400 metros acima do nível do mar, a “cidade branca”, segunda mais populosa do Peru, com mais de 850 mil habitantes, ficou conhecida por esse nome graças à cor clara de seus moradores, resultado da miscigenação entre índios e espanhóis. Muitos ligam o apelido à pedrasillar, usada na construção da maioria de seus prédios. O mineral se formou na região milhares de anos atrás devido aos gases expelidos dos vulcões.
Igreja modelada em pedra sillar
O sillar é marca registrada em todas as construções da cidade e em sua cultura. Uma das representações mais evidentes se encontra no bairro de Yanahuara: a Igreja dos Jesuítas, totalmente modelada em 1750 com a pedra branca. Sua fachada incorpora a rica mistura de culturas indígenas e coloniais espanholas esculpidas em alto-relevo.
A maleabilidade do mineral garante a riqueza de detalhes em cada figura: um anjo com coroa de penas, colunas talhadas, um gato andino que expele de sua boca ramos de flores e deles produtos típicos da região (espiga de milho, flor e o mamão arequipenho). O painel se complementa com anjos, um pássaro e, ao meio, uma índia. Na parte superior da fachada, a imagem esculpida da Virgem do Rosário, Santa Catarina de Sena e Santa Rosa de Lima.
Assim como todas as fachadas das Igrejas de Arequipa, essa também foi reformada devido aos fortes terremotos. A pedra de sillar é sensível à água e só resiste na cidade graças a pouca quantidade de chuvas. A baixa resistência do material o levou a ser usado somente em muros.
Da praça central é possível contemplar o emblemático vulcão Misti. Crédito: Christian Vinces | Shutterstock
Destaques na praça central
Ainda na praça central do distrito se pode contemplar o emblemático vulcão Misti, de 5.800 metros de altura, distante 20 quilômetros de Arequipa. Os arcos da praça, claro, feitos de rocha vulcânica, proporcionam a moldura das fotos. Há fotógrafos disponíveis nas proximidades.
Por ali também se vende “queso helado”, numa tradução ao pé da letra, “sorvete de queijo”. Mas o nome não condiz com o produto. Trata-se de um sorvete tradicional, feito de leite, açúcar, coco e baunilha. A sobremesa teria sido feita primeiramente no convento de Santa Catalina e adaptada por um arequipenho.
Conta-se que o gelo foi retirado do topo do vulcão Misti. Para não se derreter durante o tempo da viagem (em lombo de mula) até a cidade foi preciso conservá-lo em sal. O sorvete era feito da mistura dos ingredientes dentro de uma vasilha que era envolvida por outra cheia de gelo. Ao bater, a massa ganhava consistência e logo nascia uma sobremesa suave e saborosa.
Os vulcões foram essenciais para Arequipa: fizeram surgir um mineral único na região, fertilizaram o solo, foram canais de expressões da arte e da cultura local e ajudaram até na sobremesa. Por fim, sua presença ao fundo é a imagem do grande desfecho: orgulhoso, Misti divide a atenção dos visitantes com a cidade que fez nascer, sem expelir o mínimo de timidez.
Seu Fortunato e a pedreira
A imensa rocha de sillar despenca do alto do paredão de quase 20 metros de altura. Marreta em punho e mãos firmes apoiam a cunha no lugar preciso: o bloco se parte. Ainda restam mais 19 para seu Fortunato concluir o dia de trabalho. Essa rotina tem se repetido nos últimos 30, dos 55 solitários anos de vida do cortador de pedra, todos dedicados a consumir parte do paredão de dois quilômetros na pedreira de sillar, a 20 minutos do centro de Arequipa, entre os distritos de Cerro Colorado, Yura e Uchumayo.
A produção lhe garante mil Soles por mês, algo em torno de R$ 1.300,00. Seu Fortunato faz parte de uma cooperativa de 500 pessoas. O trabalho se divide em 16 frentes e três funções distintas: produzir os blocos, comercializar e entregá-los nas casas de construção da cidade.
Esculpindo história na pedreira de Arequipa
Na parede oposta, a réplica da fachada da Iglesia de la Compañía, dos Jesuítas, o brasão da cidade e a imagem de um trabalhador em atividade rendem boas fotos às dezenas de turistas . Também rendem alguns trocados extras a seu Fortunato. É o único momento em que ele abandona a marreta, se recupera da respiração ofegante e passa a talhar um pouco de sua própria história aos interessados.
O tempo de vida da pedreira ainda dependerá da combinação do que resta da quantidade de rocha, da demanda do mercado e da disposição de novos trabalhadores. Declarada Patrimônio Cultural Imaterial do Peru, a pedreira, cuja técnica de trabalho é empregada há 400 anos, viu passar diversas gerações, em muitos casos, de pai para filho.
Não será o caso de seu Fortunato. Dos três filhos, dois são homens, e não querem o mesmo destino do pai. Assim sendo, tão teimoso quanto a rocha que nunca se acaba, seu Fortunato segue a dura empreitada que a vida lhe proporcionou. Enquanto existir pedreira e fôlego, a cidade continuará a crescer a partir de suas mãos.
Os segredos do monastério de Santa Catalina
Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, o Convento de Santa Catalina é uma espécie de cidade fundada em 1579. O belíssimo museu guarda memórias da cultura espanhola em Arequipa. Mais do que paredes coloridas e corredores estreitos, por onde filhas de famílias nobres do século XVI eram entregues para a vida religiosa, a área de 20 mil metros quadrados do Convento de Santa Catalina conduz o visitante aos cômodos que resistiram ao tempo e aos terremotos da cidade.
Dentro do Monastério, que durante séculos manteve infraestrutura para abrigar até 175 monjas e mais cerca de 300 mulheres serviçais, o turista tem acesso às antigas instalações, divididas internamente por ruas com nome de cidades da Espanha. Em cada área, há sempre algo a se revelar da rotina diária das monjas: onde dormiam, oravam e se interagiam como religiosas.
Transformação do monastério em museu
Impedidas de contato direto até mesmo com os próprios familiares, o monastério, transformado em museu a partir de 1970, mostra ao público as salas de visitas, cujas grades duplas evitavam o contato corporal com os parentes, a capela, os diferentes tipos de quartos e os utensílios de época, além de quadros centenários de pintores espanhóis.
O complexo também já serviu de abrigo durante levantes populares e de colégio, onde muitas moças estudavam e se preparavam para o casamento. O visitante poderá adquirir souvenires ou doces feitos pelas próprias religiosas dominicanas, atualmente em 20, instaladas em outro edifício ao fundo do museu. Parte do dinheiro arrecadado é destinada a projetos sociais.
A abertura ao público se deu duas décadas depois de um intenso terremoto entre os anos de 1958 e 1960. Ao contrário da fé dessas religiosas, as colunas e as estruturas do complexo foram abaladas, motivo que obrigou o convento a ser transformado em museu e revelar aos visitantes suas instalações e a rotina da vida em clausura. Há serviços de guia para grupos de quatro a 20 pessoas. Os portões do monastério se abrem diariamente das 9h às 17h. As terças e quartas-feiras, das 9h às 20h.
Mercado de San Camilo
Os sabores de Arequipa começam a ser sentidos a partir do mercado de San Camilo – verdadeiro centro de descobertas da essência culinária da cidade. Desenhado pelo famoso arquiteto francês Gustave Eiffel (o mesmo que projetou a Torre Eiffel, de Paris ), o mercado de San Camilo, em Arequipa, é bem mais que um local agradável para se visitar: é surpreendente. A começar pela cultura – dizem que muitos arequipenhos preferem o mercado à padaria para comprar pães.
É comum ver diversas barracas de pães, especialmente o de três pontas e outro bem peculiar, o pão de T’anta Wawas – um tipo de confeitaria em que se usa o adorno de uma boneca em sua forma. Esses pães são usados para se celebrar uma amizade ou afeto dos pais com os filhos, entre outros motivos. Assim como no Brasil , há diversas barracas de frutas e uma área reservada somente para sucos, o mais famoso deles, o de papaia arequipenha fruta própria da região.
Sabores, história e cultura
Somente Arequipenhos compreenderão o sabor dos combinados de pastel de papa con arroz chaufa e ceviche, ou a sopa de chuño, conhecido coloquialmente como “asfalto”, entre outros pratos. Em Arequipa, o interesse pelo Rocoto relleno lembra nosso tradicional “pastel de feira”.
O prato típico peruano é um pimentão (verde, amarelo ou vermelho) recheado de carne, amendoim, ovo cozido e vários condimentos assados ao forno, acompanhados, claro, de batata. Outra curiosidade é o espaço reservado para os chapéus, alguns chegam a custar mais de mil dólares. O mercado foi erguido no local de uma igreja da ordem dos padres Camilos destruída no passado por um terremoto.
Não por acaso, logo em sua entrada, estão dispostas as imagens que se mantiveram intactas. O Mercado de San Camilo é considerado Patrimônio Histórico Monumental desde 1987. É um dos mais antigos da cidade, com cerca de 130 anos. Seus sabores misturam muita história e cultura .
La picanteria: a contínua contestação da gastronomia peruana
Picanteria é um tipo de restaurante que serve pequenas porções de diversos tipos de pratos, ou, em português, algo como servir “picado”. Picante também tem a ver com pimenta, com revolução. Existem várias versões sobre o surgimento da “picanteria”. Uma delas, é a de que os homens saiam para trabalhar e, por retornarem tarde para o almoço, comiam pequenas partes do que havia sobrado. Com o tempo, principalmente no campo, as picanterias começaram a encontrar espaço comercial: nas casas rurais, demarcadas com um pano vermelho, os trabalhadores podiam se servir do que estivesse em preparo na cozinha.
As picanterias migraram para a cidade e se tornaram locais onde artistas, poetas e políticos se reuniam para discutir ou contestar o destino do país. Muitas se tornaram locais “perturbadores” e foram fechadas por ordens políticas. A força das picanterias na história da gastronomia peruana é incontestável: ao longo de 200 anos, cerca de 700 pratos (somente em Arequipa) foram criados para transmitir, por meio de cada alimento, alguma informação ideológica, cultural ou geográfica.
La Benita de los Claustros
La Benita de los Claustros
O chef Roger Falcon, um ex-arquiteto que constrói pratos contemporâneos, mantém na picanteria que herdou de sua mãe e avó a memória desses tempos. La Benita de los Claustros, nome de sua mãe, oferece pratos contemporâneos baseados no resgate da tradição secular de sua origem: Chupe de Camarões, Ocopa Arequipeña, Rocoto Relleno, Adobo, Soltero de Queso, Bolo de Batata, Costillar Frito, Cuy Chactado, Cauche de Queso, Locro, Chaque de Pecho etc.
Se depender do Chef Roger Falcon, a contestação deve prevalecer. Ele trouxe de volta essa tradição em pleno centro de Arequipa e já prepara a expansão de sua picanteria para outro bairro da cidade, juntamente com a “chicheria”, antecessora das picanterias. Por si só, a picanteira é um “levante” contra o sistema de serviços de restaurante.
Se em outra época elas já foram espaço de inspiração, conspiração, paixão, revolução, em tempos modernos, seus pratos recuperam a memória peruana e reforçam a constante luta revolucionária da gastronomia por novos sabores. Hay que renovar siempre, perder la identidad, jamás.
Vale del Colca tem paisagem de tirar o fôlego. Crédito: saiko3p | Shutterstock
Rumo ao Vale del Colca
Os 150 quilômetros de estrada a partir de Arequipa até o Vale del Colca reservam surpresas pelo caminho: montanhas nevadas, muitas lagoas e 43 vulcões em toda a região (é possível avistar seis deles pela estrada). O Sabancaya, o único em atividade, expele cinza em meio ao horizonte de montanhas azuis.
Nessa estrada se alcança uma das maiores altitudes do Peru: 4.910 metros. Há quem sinta um pouco do mal-estar provocado pelo ar rarefeito. Mas as surpresas pelo caminho ficam próximas da rodovia: os camelinhos do deserto – lhamas, vicunhas e alpacas por vezes cruzam a imensa estrada cheia de caminhões carregados de minério.
A primeira parada é Chivay, um pequeno vilarejo acostumado a recepcionar os turistas em sua pequena praça. Do lado de fora da centenária igreja, construída pelos espanhóis há mais de 400 anos, algumas senhoras vestidas de forma peculiar trazem lhamas para fotos em troca de algum auxílio. A pequena feira em ruas próximas oferece trajes típicos e souvenires a ótimos preços.
O frio nessa região é intenso durante as noites de inverno, quando a temperatura pode cair a -17ºC. Nada que preocupe. Os aquecedores nos quartos de hospedagem garantem o conforto de uma viagem que já começa parecendo um sonho.
Cruz del Condor
O amanhecer cobra seus últimos 2ºC restantes do intenso frio da madrugada. Às 6h30 da manhã, a praça da pequena cidade de Yanque, vizinha de Chivay, parece ter estado em festa à noite toda: os dançarinos apresentam o Wititi – dança típica peruana em que o homem usa vestes femininas para enganar o padre e paquerá-las, enquanto feirantes educados oferecem roupas e artesanatos locais aos turistas que seguem em direção à Cruz del Condor.
A estrada (bem conservada) corta o Vale Del Colca e conta um pouco da história da região. Por quase uma hora, a viagem se alterna entre paradas em mirantes frente a montanhas e cânions da região, vilarejos e a vista de antigos terraços Incas, ainda usados por fazendeiros para o cultivo de batatas, milho, quinua, feijão etc.
Voo matinal dos condores
Por fim, o principal destino: a Cruz del Condor – local onde centenas de turistas se aglomeram para assistir ao voo matinal dos condores – pássaros andinos, cuja envergadura das asas é de pouco mais de três metros. O Cânion do Colca, mirante natural onde se encontra a Cruz del Condor, é um dos mais profundos do mundo: 1,2 mil metros.
O vento forte intensifica a sensação de frio, mas às 9h da manhã o sol já começa a fazer todos desistirem do casaco. Os primeiros condores começam a sair dos ninhos e planar charmosamente em frente aos mirantes, para delírio dos turistas. De acordo com o guia, praticamente 90% dos visitantes que chegam até a cidade de Arequipa incluem a “Ruta del Colca” em seu passeio, especialmente pelo majestoso espetáculo dos maiores pássaros do mundo.
O show dura cerca de duas horas, tempo suficiente para contemplar a beleza da região e dispensar o fardo das roupas de frio, que se estendesse da noite, congelaria o ânimo até nossos pássaros.
Sibayo: o povo de Pedra
A 3,9 mil metros de altitude, o rio Colca e suas correntes de água gelada, onde trutas rosadas e brancas se reproduzem, acompanha a rodovia até um povoado impressionante: Sibayo, conhecido também como o “povo de pedra”. O pequeno vilarejo, onde moram pouco mais de mil pessoas, tem cerca de 200 casas feitas de pedra e cobertas de palha, como em seus primórdios.
Em frente à igreja de São João Batista, na linda e bem cuidada praça onde se destaca uma bela fonte, se vê mulheres de trajes característicos da cultura peruana aproveitar a sombra e tecer suas roupas com fios de alpaca. Os moradores, descendentes dos índios que se fixaram na região 700 anos atrás, proporcionam um tipo de turismo cada vez mais crescente nessa região: o receptivo.
O visitante, além de conhecer o doce vilarejo, é convidado a experimentar pratos típicos na casa de um morador local – momento em que se percebe o calor do acolhimento desse povo que, de pedra, só tem o nome.
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