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Publicado em 10 de outubro de 2024 às 12:24
Certa vez escutei a seguinte frase: “não existe bicicletário no morro”. Todos os dias, moradores da periferia sobem e descem dezenas - às vezes centenas - de degraus com uma bike no ombro. É que esse meio de transporte tão popular vai muito além da sua funcionalidade original: a mobilidade. Ela é sinônimo de sobrevivência.
Hoje a história que vamos conhecer ‘dá pano pra manga’. Então, vamos do começo. Morador de Jesus de Nazareth, em Vitória, Gesaias Ferreira, de 50 anos, é casado e tem um filho autista de seis anos, o Noah. Trabalha em um escritório de contabilidade durante o dia e faz faculdade à noite. E sempre de bicicleta nesse vai e vem.
Sua paixão pela ‘magrela’ não é de hoje. Na infância e adolescência, quando morava no bairro Tabuazeiro, já fazia tudo de bike. Ao se casar com Sheila, há oito anos, foi morar em Jesus de Nazareth e mesmo assim não abandonou seu meio de transporte. Na verdade, encontrou uma solução para continuar andando sobre duas rodas.
“Eu continuo usando a bicicleta para tudo. Retiro a bike na estação, na Praça do Papa, coloco meu filho no banco e levo ele até a escola. Vou empurrando nesse primeiro momento. Depois sigo o meu caminho. Já que tem uma estação bem próxima daqui, facilita o acesso", conta Gesaias.
Gesaias é um usuário nível master do projeto Bike Vitória. Para ter uma ideia, ele já fez mais de 8 mil viagens com a ‘verdinha’. Se somar a quilometragem, foram mais de 160 mil quilômetros rodados pelo capixaba durante esses anos. O que também equivale a quatro voltas no planeta Terra.
Essa foi a pergunta que este jornalista que vos escreve fez ao seu Gesaias. Ainda vale a pena pagar uma mensalidade ao invés de adquirir uma bike? A resposta é sim. Segundo ele, não se trata somente do valor, que segundo o capixaba já é acessível, mas uma questão de logística e conforto.
“Não é fácil subir com uma bicicleta nas costas. Eu ainda consigo fazer isso com a bike do meu filho, que é de criança. Agora, com uma bike maior no dia a dia, é inviável. Além disso, ela não me dá despesa nenhuma. Se quebra, posso deixar na estação, eles recolhem”, completa.
Como dito no início do texto, não existe bicicletário em regiões mais íngremes. Assim, as estações de bicicletas compartilhadas acabam fazendo esse papel para os usuários. Se reparar nos pés dos morros da Grande Vitória, sempre há bikes presas nos primeiros degraus da escadaria.
Segundo a arquiteta e urbanista Patricia Stelzer, existem soluções de conjugação de rampa e escada que possam facilitar essa mobilidade em lugares mais inclinados. Entretanto, nos locais onde há uma acessibilidade precária, como nas regiões de baixa renda, a falta de políticas que olhem esse lado ainda caminha a passos lentos.
“Em relação à questão da topografia, do fato de ser mais inclinado, existem soluções para melhorar o acesso. Essas adaptações são necessárias até mesmo para conseguir alcançar uma segurança não só para a bicicleta, mas também para os pedestres chegarem aos pontos de interesse”, conta Patricia.
De acordo com a arquiteta, o primeiro passo para mudar essa situação seria fazer um mapeamento do local e das pessoas que utilizam bicicletas nesses lugares, como o Gesaias. Até lá, é fundamental que estações de bikes compartilhadas existam em lugares onde a ciclovia não chega.
O percurso do Gesaias todos os dias começa na estação da Praça do Papa, na Enseada do Suá. Depois ele segue para os bairros de Bento Ferreira, onde fica a escola do filho, na sequência Maruípe, local do seu trabalho, e vai até a Universidade Federal do Espírito Santo, onde faz faculdade de arquivologia à noite.
Ao todo, existem 37 estações na capital, sendo 34 regulares e 3 infantis, abrangendo 22 bairros. São cerca de 222 bicicletas compartilhadas, que podem circular em uma extensão de mais de 40 quilômetros de ciclovia em Vitória. Já em Vila Velha, o sistema é igual, mas leva o nome de BikES.
De acordo com o levantamento da Serttel, empresa responsável pelo sistema de bicicletas compartilhadas Bike Vitória e o BikES, projetos das prefeituras de Vitória e Vila Velha, respectivamente, e desenvolvidos em parceria com o Sicoob e a Unimed Vitória, no primeiro semestre deste ano foram realizados mais de 294 mil deslocamentos, com mais de 459 mil km rodados.
Um dos pontos levantados pelo nosso personagem talvez seja o mais particular: o autismo do filho. Há dois anos, Noah encontrou na bicicleta uma forma de se sentir mais livre e feliz. Segundo Sheila, mãe dele, a bike se tornou a maior aliada no tratamento do filho, possibilitando novas descobertas.
Esse bem-estar também é nítido na qualidade de vida do Gesaias. “Desde que comecei a andar com essa frequência de bike, sinto que a minha saúde melhorou muito. Estou com mais disposição, minhas taxas também estão em dia, tudo mudou para melhor, sem dúvidas”.
Essas paisagens mencionadas por Gesaias, na verdade estão por todo lugar. Orla de Camburi, Beira Mar, Ilha das Caieiras e tantos outros locais permitem que o ciclista capixaba se aventure nas margens da nossa ilha. Aos domingos, por exemplo, trechos de grandes avenidas ficam fechadas para se tornarem Ruas de Lazer. Uma opção a mais de passeio aos finais de semana.
Para que as bicicletas compartilhadas fossem possíveis na capital, duas cooperativas se uniram: Unimed Vitória e Sicoob. Segundo a assessora de Comunicação e Marketing da Unimed, a ideia do projeto surgiu da necessidade de oferecer à população uma forma de mobilidade mais rápida, sustentável e saudável.
O projeto começou em 2016, inspirado no que já existe em outros países e grandes capitais do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo. “Por Vitória ser uma cidade plana e com muitas ciclovias, seria um local perfeito para ter essa possibilidade. Alcançamos cerca de 2 milhões de viagens desde o lançamento”, destaca.
Já a gerente de Inteligência e Marketing do Sicoob, Carolina Bento, frisa que uma das premissas do projeto foi ter estações em diversos bairros. “Quando a gente fala de comunidade, tem tudo a ver com o nosso propósito, materializa o desenvolvimento econômico e social. É sobre a importância da inclusão social e se sentir pertencente a cidade que vive”.
Compartilhar bicicletas representa algo muito maior do que o senso de comunidade. É também uma oportunidade de transformar vidas, como a do Gesaias. Afinal, é graças à ‘verdinha’ que o peso de subir as escadarias fica - um pouco - menor. E mesmo não tendo bicicletário no morro, a bike sempre terá um lugar especial na vida dele.
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