• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: Corrida de ratos

Publicado em 06/11/2022 às 02h03
Homem triste na cama

Aquela constatação que surge depois do banho, no quarto, triste, sozinho: "podia ser mais simples...". Crédito: Shutterstock

Ou 8, ou 80!

(Mas quem foi que disse que precisa ser assim? Direita ou esquerda, preto ou branco, pior ou melhor, ganhar ou perder?)

Ser melhor: vencer, ultrapassar, provar, dominar. Ou, pior: perder, reprovar, ficar pra trás, afundar.

Esse contraste é na verdade um dos grandes responsáveis pela infelicidade. Como se não soubéssemos nos reconhecer nas cores que habitam o meio, lutamos para ser o brilho da ponta da lança o tempo inteiro.

Chato isso.

Numa roda de conversa qualquer, o sujeito precisa vencer, e pra isso transforma a questão numa discussão. Quando se dá conta, já não está defendendo seu próprio argumento, mas o lugar de "campeão" – porque, ora, é isso que ele foi criado pra ser. Desde pequeno, ao invés de ser estimulado a enxergar nas diferenças uma possibilidade de ampliar a visão, aprender e crescer como ser humano, ele foi educado para encontrar nelas a oportunidade de vencer. 

Apontando o erro alheio, seguimos. Mesmo porque o mantra social ensina exatamente isso: "É na falha do outro que eu me fortaleço" – como se tirar vantagem de tudo fosse a grande sacada da aventura humana nesse planeta.

– Até quando?

Nas corporações, então, o sujeito é estimulado a competir de todos os lados. Cargos, contas, salários, isso para não falar de reconhecimento e troféus estrategicamente criados para acirrar ainda mais o clima de "vence o melhor".

Esquecendo-se que o objetivo é sempre o mesmo, homens e mulheres disputam, se submetem ao jogo, passam a perna, mentem, e se deixam deformar no caráter para dar orgulho ao sistema. Assim, sem lógica mesmo. Como se a tática da hierarquia fosse uma criação divina.

Estupidez!

Nas relações amorosas a competição também é sorrateiramente estimulada, e no fim das contas se revela trágica. Quem manda, quem sabe, quem ganha... E o casal passa uma vida disputando espaço, competindo o tempo inteiro para provar seu valor. E quando se separam? Disputam pelo patrimônio, brigam pela guarda dos filhos, e às vezes levam o resto da vida competindo… Como se o bem maior não fosse o amor, a alegria e a saúde mental dos filhos, transformam a briga num novo compromisso.

Não dou conta…

No ambiente doméstico, no salão de beleza, na sala de aula, enfim, aonde o clima de colaboração deveria reinar, a disputa por ser "a melhor" também está. A cozinheira reclama da faxineira, porque ela limparia muito melhor; a manicure fala mal do trabalho da outra porque só ela sabe fazer assim-assado e tal; a professora não se dá conta, mas estimula a competição entre as alunas quando só elogia sua preferida.

Chega a ser engraçada essa nossa corrida de ratos... Lutando sempre pelo "melhor" ou "maior" como se este lugar existisse, afinal.

Nota: tem uma frase que meu pai repete e não falha em me fazer pensar: "o ótimo é o inimigo do bom" – vale a pena lembrar.

– Pra quê mesmo? Milhões de seguidores, milhões na conta, cinco carros, quatro casas, três advogados, dez processos judiciais, onze troféus na estante, alguns amigos, muitos inimigos, e aquela constatação que surge depois do banho, no quarto, triste, sozinho: "podia ser mais simples..."

Enfim, acredito: ganhar é saber viver – ou deveria ser. É ampliar nossa condição humana e ir além de nós mesmos.

Mas, infelizmente, em algum ponto, lá atrás, conseguiram nos convencer de que a vida foi feita pra vencer.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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