Sabida, havia comprado por 40 dólares uma garrafa de "Memórias" no "freeshop" . Crédito: Shutterstock
"Portas em automático" – avisou o comandante.
A poltrona ao lado ainda estava vazia, ou melhor, com um pequeno travesseiro branco e um cobertor azul claro dobrado, dentro de um saco plástico, transparente, fino, lacrado – perfeito! Seriam extras naquela viagem. Tudo certo. Até a sequência de filmes já estava escolhida. Sabida, havia comprado por 40 dólares uma garrafa de "Memórias" no "freeshop" e tinha no bolso do casaco um pequenino-delicioso comprimido de dormir. O voo ia ser uma festinha.
Colocou a bolsa no assento vago e os fones sobre os ouvidos. Afivelou o cinto, abriu o cobertor aveludado e ajeitou sobre as pernas – ouvia "Fly me to the moon" (é, o "shuffle" do telefone dela também trazia "Sinatra"). Apoiou o cotovelo no descanso de braço, segurou o queixo com a mão direita e ficou olhando as luzes de partida pela janela. A aeronave já estava posicionada na cabeceira da pista, as luzes baixas, o sinal da cruz, a velocidade, o barulho e a decolagem. Frio na barriga e o céu marinho, salpicado de estrelas brilhantes desenhando o horizonte. Subindo, subindo... Finalmente, "a paz" da altitude alcançada.
Até que, de repente, do nada:
– "Oi, desculpa, licença? É que meu monitor não está funcionando, você se incomoda se eu sentar aqui?" – e foi sentando.
De reflexo, ela foi tirando a bolsa, se ajeitando e concordando – era bem educada. – "Pois não".
Engraçado, reparou, era o mesmo moço que discretamente, ficou olhando pra ela durante todo embarque. (Nota: não era bonito, nem feio. Era másculo).
Ele acomodou a mochila debaixo da poltrona e foi ligando o monitor. Parecia já saber qual filme escolher e foi manejando os botões na tela até conseguir. Colocou o fone de ouvido e sorriu pra ela com cara de alívio. Era um homem satisfeito (e como eles ficam atraentes neste estado de espírito).
Ela estava no início de um filme, que coincidentemente, era o mesmo que ele havia escolhido. Apertou o aviso para chamar a comissária (precisava de uma taça, que no caso seria um copo plástico, para o vinho). A moça, de uniforme marinho e batom cereja, trouxe dois copos grudados. Ela se serviu com cuidado ("malandramente", a rolha havia sido sacada antes do embarque). Ele olhou de relance, curioso do rótulo. Ela, sentindo o prazer de ser a dona da garrafa, achou que dividir um voo de 13 horas era mais que um bom motivo para ser gentil:
– "Você aceita?"
E ele, tirando rapidamente o fone, respondeu com simpatia – "Sim! Como dizer não!? Obrigado."
Tomaram o primeiro copo de "Memórias" relativamente rápido. O filme era um suspense enigmático – que na tela dela, estava dois ou três minutos adiantados. Quando os copos acabaram, ele aproveitou a deixa do "refil" que ela ofereceu, para pedir um favor:
– "Sabe o que é: eu não consigo parar de olhar seu monitor. Você espera eu te alcançar?"
E ela sorrindo, "claro. Mas o que eu faço?"
E ele – "Pausa... – e emendou levantando o copo – "Nossa, que vinho!"
– "Ele é muito bom mesmo... Qual seu nome?"
– "Matheus, prazer. E o seu?"
Veja também
– "Raquel."
– "Raquel..."
Pausa.
(Suspiro, sorriso de canto, alívio).
Ele queria poder dizer que aquele era um encontro marcado. Que era o início de uma nova, importante, aventura. Que depois daquela noite no céu, nunca mais seriam os mesmos. Que não era vidente nem nada, mas já sabia de tudo. Soube reconhecer (e isso bastava): era ela. Também sabia que tentar explicar pareceria absurdo, beira de precipício – e mesmo pressentindo que ela não tinha medo de altura, preferiu não correr risco. Então, sorrindo, muito cúmplice de si, propôs um brinde.
Sem nunca terem se visto antes, mataram uma garrafa de "Memórias" em copos plásticos. Depois dividiram mais meia dúzia de miniaturas e, literalmente, "viajaram". Fizeram uma festa no céu – até que o dia amanheceu.
Ninguém nunca soube do final do filme. Ninguém jamais dormiu. De olhos abertos, morrendo de sede, muito antes do primeiro beijo – já eram "Raquel e Matheus".
Maria Sanz Martins
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