Naquele dia, comendo galinha ensopada com talheres de prata, a dona da casa desejou também ter sido, em outro sentido, milionária. Crédito: Shutterstock
Queria ter vivido simplesmente.
Sido contente. Amado perdidamente.
Ter quem sabe se chamado Glória, ou qualquer outro nome que rimasse com ‘outra história’...
Ter ido de ônibus pra escola. Tomado café no balcão da padaria, e aos sábados, cerveja, no quintal da vizinha.
Ter jogado conversa fora. Comido coxinha de galinha, quibe, empadinha. E aos domingos, macarrão com farofa.
Sabido tocar chocalho, preparar feijão de corda, e picar miudinho cebola e alho. Ter lavado a louça do almoço com palha de aço, feito amor na varanda, ganhado massagem nos pés e, de tarde, ajudado Tião, seu delicioso marido, a ensaboar o carro.
Queria ter passeado de mãos dadas na praça. Comido churrasquinho de gato, brigadeiro na panela e pão com mortadela.
Mas essa mulher, simplesmente, não era ela.
Ela, na verdade, era absolutamente diferente - sofisticada, intelectualizada, refinada e, inexplicavelmente, descontente.
Tinha nome de rainha e educação suíça. Morava numa casa com um lago, duas piscinas e dezesseis empregados. Nunca lavou uma vasilha ou pôs os pés na cozinha. Nunca tomou um ônibus, ou conversou com estranhos. Não fumava, nem bebia. Não comia fritura, doces, ou enchidos de padaria.
Era maníaca com assepsia - e secretamente orgulhava-se de escovar os dentes, precisamente, sete vezes ao dia. Falava cinco línguas. Tocava harpa, violino e piano. Casou-se por sabedoria, mas não sabia dizer se escolheu ou foi escolhida, só que o sobrenome de seu marido rimava, em todos os sentidos, com o de sua família.
Todos os dias ela almoçava sozinha - precisamente, ao meio dia. Legumes orgânicos na bandeja de prata, água importada na taça, e guardanapo de linho bege, bordado com letras douradas.
E assim, a vida fluía - sintética e insossa como uma lustrosa maçã de louça.
Até o dia em que Glória, uma nova funcionária, que além de morena e vistosa, estava desinformada sobre as rigorosas regras da casa, entrou na sala de almoço meneando os quadris e murmurando um samba, enquanto carregava uma travessa fumegante e perfumada.
Era uma moça de lábios e olhos sorridentes, que tinha as unhas vermelhas e os cabelos anelados, que mesmo presos sob a toca do uniforme de cozinheira, se faziam viçosos, de tão bem tratados.
Pediu licença à senhora, colocou na mesa a bandeja e disse que havia tomado a liberdade de preparar um novo prato. Recebeu de volta um olhar cortante, mas não perdeu o gingado, e foi explicando com graça que aquela era uma receita pra lá de saudável: “Experimenta! Se a senhora não gostar, prometo que jogo no lixo meu avental de cozinheira” – disse rindo satisfeita.
Bem, até hoje não se sabe dizer se foi o sorriso, o samba murmurado, ou a faceirice de Glória que fez aquela dona, refugiando-se na chance de tapear a solidão, repentinamente, tê-la convidado como quem faz uma confissão:
“Então tire agora mesmo o avental e sente-se ao meu lado. Me diga seu nome. Me conte de onde você vem, e o que come. Me fale do amor, do samba, e o que você faz nos finais de semana (...)”.
E assim, desfiou um rosário de perguntas sem fim. Não fez questão de ser superior, ou inteligente. Teve humildade para, enfim, compreender o que, para ela, era uma grande curiosidade: saber que tipo de riqueza faz uma pessoa ser simplesmente contente.
E assim, naquele dia, comendo galinha ensopada com talheres de prata, a dona da casa desejou também ter sido, em outro sentido, milionária.
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