O palhaço é aquele de algum modo, excluído do sistema e exatamente por isso, observa melhor a tudo, é livre graças ao reconhecimento do próprio “fracasso”. Crédito: Anastasiya Kargapolova/ Freepik
Ouvi dizer que a vida é uma obra que se transforma em sujeito.
Quando a gente pinta o rosto, quer dizer, quando eu pinto o rosto, me encontro com alguém que sou. Uma versão de mim, que eu mesma malho à quente com tintas, pinceis e esponjas. Envolvida na escolha de traços, tons, intensidades... Invento. Brinco de ser quem serei dali em diante.
Esse encontro com o espelho convoca essa que secretamente vejo.
Ela, que no meu caso é um tanto palhaça, jura de forma sincera que nem tudo deve ser levado tão à sério... Permito, dou ouvidos, pisco o olho direito, depois sorrio de volta pra ela... Talvez por isso eu ria à toa, e ria até da tentativa de nos imporem regras sobre como devemos ser! (Rá!)
– Por que tão sério? O palhaço quer saber.
Perceba, como para todos, esse encontro diário com o espelho – seja lavando o rosto, escovando os dentes, pintando a cara, ou fazendo a barba, é uma momento de convocação: um chamado ao sujeito que achamos que devemos, que queremos, que podemos, que somos ou precisamos ser... Porque, note, ele não estará presente até que o convoquemos.
(Você pode me entender?)
Essa mulher que eu penso que posso ser, por exemplo, se torna aquela que sou no momento em que a faço comparecer.
No momento em que a encanto... Seja com o olhar, com uma dança, com a pintura, com uma máscara ou com o feitiço da intenção – purpurina, pó de estrela, física quântica purinha.
O palhaço é aquele de algum modo, excluído do sistema e exatamente por isso, observa melhor a tudo, é livre graças ao reconhecimento do próprio “fracasso”. Aqui entre aspas mesmo, porque aquilo que não se ajusta e que não se enquadra, quando bem articulado, acaba bem-sucedido: esgarça, invade, provoca, dilacera, espeta o outro, exatamente como numa palhaçada.
Livres, os palhaços que somos investem tempo na codificação dos próprios sentimentos que, em ato, serão decodificados.
Provocarão risada, apreço, compaixão, suspiros... Ou não. Nós palhaços, suplicando acolhimento ou provocando contato, ousamos tocar a campainha da alma alheia. E nos humildamos, assumindo a própria miséria do descabimento, vestidos com roupas e sapatos encontrados pelo incerto do caminho, pintando os olhos arregalados pela constância do fascínio e exibindo narizes vermelhos, de quem nunca chorou escondido.
Nota: com o perdão de quem é legítimo no nobre ofício da palhaçaria, me incluí em texto por obra da vida. Obra essa, no meu caso, regida por um espírito brincalhão, que me convoca, que pinta, dança e esbanja purpurina.
É, pode apontar ou pode sorrir, (te pisco meu olho direito) e sinto: sou mesmo assim.
Um beijo,
Maria
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.
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