Claro, desimpedidos, nós humanos, buscaríamos a todo custo (e egóicamente) a satisfação dos nossos próprios desejos e o caos seria instaurado. Crédito: Shutterstock
Ainda menina, Cláudinha sentia inveja e ciúme do tratamento especial que achava que sua mãe concedia à sua irmã Patrícia. Aos poucos, isso foi se transformando numa furiosa hostilidade contra a mãe. A cada dia, Cláudinha se tornava mais briguenta, rebelde e desobediente. Mas, como o leitor pode imaginar, também o amor que ela sentia por sua mãe era imenso – o que a colocava numa espécie de conflito interno. Sentia ciúme e raiva por um lado, e por outro, culpa e medo de que isso um dia lhe custasse o amor materno. De modo inconsciente, encontrou como saída o deslocamento.
Transferia a raiva para outras mulheres. Primeiro foi Tamara, a professora de educação física, depois a irmã de uma coleguinha, depois uma vizinha, e assim por diante. Durante toda a adolescência, sempre havia em sua vida uma segunda mulher importante com quem ela rivalizava violentamente. Desse modo, sentia diminuída a culpa que sentia.
Mas, ainda assim, a danada da culpa resistia. Por isso, com o passar do tempo e o início do processo de amadurecimento, Cláudia passou a recorrer a um outro mecanismo: no lugar de deslocar a raiva, ela interiorizava a rivalidade que até então estava relacionada somente a outras mulheres.
Se torturava com auto-acusações e sentimentos de inferioridade. A bem da verdade, Cláudia se auto-sabotava...
Virava e mexia, dava um jeito de se colocar em desvantagem e prejudicar seus interesses, abdicando dos seus desejos para atender as demandas de terceiros. Enfim, para eliminar a culpa, sucumbia à si mesma. – Era uma espécie de paz às avessas...
Por falar em paz, aliás, segundo Freud, o sentimento de culpa "é o preço que pagamos por um alto nível de civilização".
Mas, para burlar o pagamento deste preço, assim como Cláudia, todos nós desenvolvemos nossos próprios mecanismos de defesa. Ou seja, uma forma de manipulação da percepção, com o objetivo de auto-proteção contra a ansiedade, a culpa, a angústia, o medo... Ou qualquer outra sensação de desamparo iminente.
Enquanto crianças, estas sensações de desproteção costumam ser intensa e frequentes – gerando clássicas reações pirracentas, de choros e desobediências. Mas na medida da passagem do tempo, ou na medida em que vamos crescendo, ou, ainda, na medida em que nos tornamos mais "civilizados", como queira – mais sofisticados estes mecanismos vão se tornando.
Assim, inventamos saídas para escapar do sentimento de culpa, e quase sempre nos esquecemos das consequências...
Outro dia, Cláudia concordou em acompanhar sua prima a uma palestra. Mas na verdade não queria ir. Queria mesmo era ficar em casa e ver a novela. Assim, na tarde que antecedia a noite do evento, telefonou para desfazer (com todo cuidado) o combinado, mas a prima a xingou de furona pra baixo. Sentiu-se culpada e achou que não podia desapontá-la, independente de sua vontade. Foi. Eliminou a culpa e voltou para casa absolutamente frustrada.
Familiar essa histórinha, não? Pois é, a "civilidade" nos impele a estar sempre executando alguma tarefa, cumprindo algum compromisso, a ter sempre um horário marcado. (Por isso, tem gente que se sente culpado até em ficar 10 minutinhos desocupado). É... Mesmo quando discreta, a culpa pode nos levar à tentativa de reduzi-la por meio da auto-punição, da frustração ou do fracasso.
Tsc, tem jeito não, a culpa sempre sai cara...
Fazer o quê? Se também sem ela a convivência se tornaria insuportável.
Claro, desimpedidos, nós humanos, buscaríamos a todo custo (e egóicamente) a satisfação dos nossos próprios desejos e o caos seria instaurado. Imagine crianças fazendo o que bem entendem! Rabiscando as paredes; pulando na cama até de manhã; jantando sorvete; (e Claudinha? Socando a fuça da irmã!).
Por isso, como bem explicou Freud, desde o nascimento tratam de instalar em cada um de nós uma espécie de "chip" interno de repressão (mas pode chamar de superego). Um mecanismo controlador que, em linhas gerais, nasce primordialmente do medo da perda do amor (dos pais, primeiro).
Enfim, ao longo da vida carregamos poderes psicológicos nem sempre convenientes...
E é exatamente por isso que a paz mental e, por que não dizer, mundial (!), está constantemente numa posição precária...
(Como diria meu avô: é uma parada!)
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