O que é verdade e o que é invenção?
Pousamos em Brasília. O caderno é novo e a lapiseira, legítima. O avião agora anda como fazem os carros no asfalto, curvando lentamente, procurando sua vaga na pista.
Voei até aqui para descobrir o que não sei ainda – coisas misteriosas sobre minha própria vida.
Caminho pelo meio, ora na coxia, outra no picadeiro, no movimento entre o saber e o não saber – ciente somente de que toda forma de dança pede equilíbrio. Na maior parte do tempo, contudo, admito, sigo sem ciência mesmo, tendo como guia apenas a bússola cardíaca.
Por sorte, para essa aventura tenho comigo um par valoroso de amigas. Viemos descobrir juntas, cada uma seu ponto de travessia. É isso, estamos agora na estrada para Alto Paraíso.
(Quatro dias se passaram)
Estamos agora de partida. O avião desliza na pista para decolagem, como só os aviões mesmo. Voltamos do Paraíso com joias preciosas – corpos, mentes e malas repletas delas. São pequenos portais de acesso que trazemos como amuletos e recordações da busca vivida.
A jornada não finda, mas o recorte da comunhão com a vida de nossas vidas e umas com as outras, sobre o maior cristal do planeta, merece uma pausa reflexiva: algumas verdades são míticas.
Ou seja, não-toda ela é verdade, posto que “há sombra” ainda.
De tudo o mais: estou aprendendo a receber insights.
Perceba, receber é a ação de se fazer recipiente, de se esvaziar, de saber sustentar o vazio.
E como ser pode curativo esvaziar-se de achismos, de certezas, de apegos, de compromissos com velhos padrões de pensamento, de sentimentos... Somos todos recipientes com entupimentos, e nosso trabalho por aqui é desobstruí-los. Operar a limpeza, o esvaziamento.
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Porque é fundamental limpar para receber. Não é isso que fazemos quando vamos receber vista? Limpamos a casa, batemos os tapetes, abrimos as janelas, arejamos os cômodos...
Ora, a força da vida é exatamente essa visita, só que constante e poderosíssima. Mas para fluir através de nós como um sistema vivo, os canos precisam estar limpos, desobstruídos.
Acessar as pedras, entulhos, cordas, galhos, dores, traumas ou memórias que bloqueiam o fluxo é a chave que abre a porta e ilumina o caos, o nó, a ferida. E só então começa a limpeza, o desapego necessário para deixarmos rolarem as pedras, os pesos, os engodos das fantasias, as mentiras que contamos para nós mesmas para darmos conta das dores vividas.
Precisamos perder aquilo que não precisamos.
Mas perder não é simples... Porque sempre inventamos meios de achar outra vez. De voltar na mentira.
A minha mentira fundamental, por exemplo, é a fantasia de que nunca fui amada o suficiente. Mentira essa que venho contando para mim mesma com cada átomo e cada célula do meu corpo, desde as primeiras dores da primeira infância. Uma invenção que pode ter surgido com um “não” acidental proferido pelo meu pai, ou pelo ciúme sentido quando minha mãe chegou da maternidade com meu irmão. A teoria atômica sobre o desamparo também pode ter sido criada pelo fato dos meus pais terem sido apaixonados por seus próprios trabalhos e devotos de suas próprias vidas – (exatamente como sou agora).
Enfim, as dores, os galhos e pedrinhas que bloqueiam o fluxo podem ter vindo de inúmeras fontes durante a minha infância, mas a verdade é só uma: tudo mentira! Ou invenção, como preferir.
Atravesso um pouco mais a cada dia, essa autoficção. Crédito: Shutterstock
Eu fui muito amada. Aliás, eu nasci num ninho de amor, com muita música, festa, perfume, banhos de banheira e trapalhões aos domingos, passeios nas montanhas, casa dos avós cheias de primos, um irmão aventureiro e engraçadíssimo, um pai genial de paletó e gravata, e uma mãe linda, mística, poderosa, artista, piloto de carros esportivos, tenista, empresária, galerista, corajosa e amorosa.
Eu fui muito amada.
Todo resto é entupimento.
Todo resto é fantasia.
E é dessa fantasia que me liberto. Ou, atravesso um pouco mais a cada dia, essa autoficção, liberando as cordas da invenção para abrir espaço, respiro, para deixar fluxo, para receber mais Graça, mais vida na vida.
Maria Sanz Martins
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