• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: Tempo de colchão

Publicado em 13/11/2022 às 02h00
casal na cama

Não tem melhor fase que essa em que vivemos esparramados, nos tornando cada vez mais cúmplices e mais íntimos . Crédito: Shutterstock

“O tempo não é uma estrada. Ele é um quarto”. John Fowles

Existe um lugar com não mais de dois metros quadrados que ao longo do tempo foi sendo extravagantemente melhorado.

Se nos primórdios o chão forrado de folhas e, com alguma sorte, um pouco de feno, era o descanso do guerreiro, hoje a cama – e seus deliciosos, infinitos apetrechos – é um particularíssimo planeta.

Ainda é nele que se descansa de olhos fechados, claro. Mas o que há de melhor na minha lista de vida é o que se passa por sobre este cenário. Porque que a cama é o palco onde se apresenta sua majestade, a intimidade – ela que é gloriosa por excesso de simplicidade.

Horas de colchão com quem se ama são uma espécie de quilometragem dourada, que nos leva por uma longa estrada, mata adentro do peito, fundo afora na alma. (É, pensando bem, deve haver uma explicação científica para o porquê de nos conhecermos melhor deitados...)

Desculpe se decepciono, mas não estou falando daquilo que você pode estar pensando (claro, também isso é importantíssimo). Mas aqui falo do tempo que passamos conversando. Conversando, brincando, beijando, abraçando, sendo gaiatos, vendo TV, lendo jornal, comendo fruta, pipoca, chocolate, rindo, chorando, gargalhando, confessando, de pernas para o alto, na horizontal, sentados, abraçados. Pais e filhos, amores, amigos, irmãos. Ficar juntos na cama faz uma bem danado.

Nos aproxima.

Fui criada na enorme cama de meus pais, brincando, assistindo filmes inesquecíveis, conversando pelas manhãs, e nas tardes de domingos e sábados. Juntos, muitas vezes fazendo nada; calados mas colados. Percorrendo a estrada, adentrando a mata, curtinho a paisagem. Dizendo te amo sem nenhuma palavra.

Também com minhas amigas, na adolescência, quantas noites não passamos em claro salvando a humanidade? E depois da escola; antes da festa; depois do almoço de sábado, segredos, lamúrias, juras, gargalhadas.

“A cama da nossa casa é o melhor lugar que existe!”. Não sei quem disse, sei que é uma máxima, e não posso estar enganada. Porque é nesse planeta acolchoado que nossa vida tem mais sentido. (Você não acha?)

Não há outro lugar em que seja mais gostoso olhar nos olhos do filho, dar as mãos ao marido, ouvir música abraçados, brincar de velhos namorados, conversar fiado, caçar cravos, fazer carinho, fazer pirraça, fazer cosquinha, fazer dengo, tomar sorvete, comer melancia, ficar descabelado, tirar o relógio do braço, dormir.

E acordar juntos? (Mesmo que seja reclamando do decididíssimo despertador alheio – nada traz a mesma sensação de aconchego…)

É cabana para o coração. Razão pela qual isso de passar o tempo com quem se ama sobre molas ensacadas, cobertas de espuma, seja assim tão mágico – tipo que nem bombom de chocolate branco com castanhas e recheio de doce de leite queimado – imbatível.

Aliás, um perigo!

Perigo, ora! Quantas paixões avassaladoras não nasceram assim?

Nessa mesma categoria de uma visita ao Éden, montado num cavalo branco com asas rosadas, está isso de ficar gastando preguiça na cama, com cara de bobo, sem sentir direito as pernas e com cabelos eriçados.

Falando nisso, lembrei que outro dia encontrei um casal de namorados que há pouco decidiram morar juntos. Rapaz, dava gosto de ver o novo grau da intimidade... Bonito mesmo sentir o cheiro das horas de colchão que aquela convivência exalava. Pudera. Sem filhos pequenos, nem TV no quarto, num apartamento só pra eles – e uma geladeira programada (morango, mexerica, uva verde sem caroço, sorvete de iogurte, leite condensado, cerveja importada), os dois curtem como nunca as benesses de um par de travesseiros, um amor, um edredom e um ar condicionado.

Não tem melhor fase que essa em que vivemos esparramados, nos tornando cada vez mais cúmplices e mais íntimos de cada curva do corpo, de cada tom da voz, de cada jeito descabelado do cabelo.

Jovens aproveitai!

É pena, mas não lhes minto: a vida vai deixando estes momentos cada vez mais raros.

Compromissos, crianças, trabalho, telefone, brinquedos... A cama tende a ficar cada vez mais tumultuada, e a intimidade, coitada, perdida da Silva, acaba sentada numa pedra na beira da estrada.

Ela espera. Espera… E espera sem nunca perder a esperança de um dia ser resgatada.

Verdade. Pode procurar. Hoje, quando a visita for embora, deixe a sala de estar, tire os sapatos da alma, segure seu bem pelas mãos e leve o tempo para passear no melhor dos melhores metros quadrados já inventados.

Nosso templo particular acolchoado.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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