Mesmo em um ano marcado pelo enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, quando o medo da contaminação reduziu a quantidade de pessoas nas ruas, os homicídios dolosos não deram trégua. De janeiro a setembro de 2020, 833 vítimas perderam a vida no Espírito Santo. O índice de assassinatos representa aumento de 16,5% se comparado ao mesmo período de 2019, quando 715 crimes da mesma natureza foram registrados.
A taxa chama a atenção não somente pelo fato de ser um crime contra a vida, mas, do ponto de vista estratégico, revela um cenário preocupante para os gestores da segurança pública. Em 2019, o Espírito Santo teve a melhor série histórica em relação aos homicídios dolosos dos últimos 24 anos: 987 mortes (menos de mil) foram contabilizadas pelas forças de segurança.
O desafio agora é conter o aumento da violência e reverter o quadro. Segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp), 80% dos crimes estão relacionados a conflitos originados pela disputa e controle dos pontos de tráfico de drogas ou acerto de contas entre traficantes e usuários.
O titular da Sesp, secretário Alexandre Ramalho, afirma que é necessário continuar o trabalho de desarticulação das quadrilhas que operam o tráfico de drogas e, consequentemente, têm relação com os tiroteios e assassinatos investigados pela Polícia Civil. Segundo o governo, as operações de segurança, com abordagens e cercos táticos em diversos trechos das vias públicas estaduais cresceram.
37%
É O PERCENTUAL DE QUEDA DE FEMINICÍDIOS EM 2020 NO ESTADO
Enquanto todo o ano de 2019 contabilizou 11.252 ações, entre janeiro a setembro de 2020 foram 13.292. Nos nove primeiros meses de 2020, 31.264 pessoas foram conduzidas às unidades do sistema prisional capixaba administradas pela Secretaria de Estado da Justiça (Sejus). Os dados envolvem a detenção de adultos e a apreensão de adolescentes em conflito com a lei. Ao longo de 2019, foram 48.383 prisões.
A Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) informou também que 1.277 acusados de envolvimento em assassinatos foram presos nos nove primeiros meses de 2020. Já nos 12 meses de 2019 foram realizadas 1.857 prisões. De janeiro a setembro de 2020, 2.968 armas foram apreendidas. No ano anterior inteiro foram 3.338. De acordo com dados da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), até 13 de outubro, a população carcerária do Espírito Santo chegava a 22.544 detentos.
O jurista e professor de Mestrado em Segurança Pública, Henrique Herkenhoff, defende que o Estado deve focar sempre a resolução dos casos de homicídios, com identificação e prisão dos responsáveis pelos delitos. “Os homicídios não podem nunca sair do radar, mesmo quando há melhora dos indicadores. É impossível cuidar dos demais crimes se voltarmos ao cenário de faroeste de 15 ou 20 anos atrás. Precisamos fazer tudo para retomar a tendência de queda, pois já está demonstrado que essa é uma violência cíclica”, explica Herkenhoff.
Na avaliação do especialista em Segurança, o patrulhamento preventivo pode ajudar desarmando os criminosos, mas é com inteligência e investigação que se obtém a punição. A solução, segundo Herkenhof, é não deixar nenhum homicídio impune. “Se recobrarmos a tendência de queda, as polícias capixabas estão prontas para estender aos demais crimes patrimoniais violentos o excelente trabalho que foi feito em relação ao roubo de carga, por exemplo. Temos um desafio difícil para 2021. Em compensação, se ele for vencido, estão reunidas as condições ideais para, ao longo dos próximos anos, reduzir drasticamente todos os tipos de roubo”, analisa.
Henrique Herkenhoff
Especialista em Segurança Pública
"Os homicídios não podem nunca sair do radar. É impossível cuidar dos demais crimes se voltarmos ao cenário de faroeste de 15 ou 20 anos atrás "
O enfrentamento aos criminosos planejado e desenvolvido a partir de uma articulação entre o governo do Estado, por meio das polícias Civil e Militar, Poder Judiciário, Defensoria Pública e o apoio da sociedade civil organizada. Essa uma das estratégias sugeridas por Pablo Lira, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor de Mestrado em Segurança Pública.
“Vivemos um período da pandemia, um fator atípico, e já sabemos que isso teve desdobramento nas atividades dos grupos ligados ao tráfico. A não circulação de pessoas nas ruas e a falta de eventos, provavelmente, influenciaram uma redução da demanda de drogas ilícitas”, avalia. Lira complementa dizendo que a mudança do comportamento da sociedade pode ter acarretado, também, no desejo de ampliação de área de atuação dos criminosos que comercializam entorpecentes.
“Os grupos ligados ao tráfico passaram a disputar, com maior intensidade, o domínio do mercado de droga e o território de atuação deles no Estado”, comenta.
ESTUPRO E FEMINICÍDIO
Enquanto os homicídios cresceram na pandemia, as ocorrências de estupro caíram 24,6% e o feminicídio retraiu 37%, nos nove primeiros meses de 2020. Os indicadores, no entanto, são altos. Até setembro desse ano, 992 mulheres foram estupradas no Espírito Santo, o que representa mais de 100 por mês. No mesmo período do ano anterior, foram registrados 1.316 casos. No total de 2019, 1.736 vítimas denunciaram o crime à polícia. Já os feminicídios - termo que se refere a crimes contra a vida de mulheres praticados em função do gênero – totalizam 17 em 2020, contra 35 em 2019 .
INVESTIMENTO EM JOVENS
Os boletins de ocorrência policial revelam que, tanto as vítimas como os autores dos crimes, são jovens negros da periferia que atestam baixa escolaridade ou que, muitas vezes, não frequentam a escola.
Segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp), cerca de 80% dos crimes letais, em 2020, foram praticadas por armas de fogo e a maioria das vítimas tem menos de 30 anos, cerca de 76%. Para se ter uma ideia, de acordo com o Atlas da Violência 2020, entre 2008 e 2018, 10.233 jovens com idade entre 15 a 29 anos foram assassinados no Espírito Santo.
80% dos crimes letais
FORAM PRATICADOS POR ARMAS DE FOGO
O titular da Sesp, Alexandre Ramalho, destaca que é importante que políticas públicas sejam adotadas para que a realidade dos jovens seja transformada. Segundo ele, o papel das polícias é trabalhar com foco operacional na apreensão de armas, prisão de homicidas e promover o encaminhamento de todos os detidos para serem submetidos às medidas cabíveis do Poder Judiciário do Espírito Santo.
“Estamos falando de uma criminalidade juvenil. Essa cobrança não poder recair somente sobre as polícias, nós estamos falando de jovens de baixa idade, com pouca ou nenhuma escolaridade, que vêm de famílias desestruturadas e só enxergam o tráfico de entorpecente como forma de vida”, pontua.
O secretário de Segurança Pública destaca o perfil agressivo dos rapazes que entram para o crime. “Estamos vendo jovens muito violentos, jovens determinados a matar para poder reinar na venda de entorpecentes. Vamos continuar trabalhando, mas precisamos tratar todas essas questões sobre outras perspectivas que vão muito além das ações policiais. Temos, por exemplo, o Programa Estado Presente que tem o eixo social e o policial”, argumenta.
Fabricio Sabaini
Mestre em Segurança Pública e servidor da PF
"A presença das forças policiais no dia a dia das comunidades, como agente protetor ao invés de incursões periódicas, traria muito mais segurança na ocupação de espaços territoriais pelo Estado, evitando conflitos"
O Programa Estado Presente em Defesa da Vida, lançado pelo governo do Estado em 2019, tem como foco a redução dos índices de violência e criminalidade. O eixo policial, envolve ações de controle da criminalidade, com enfrentamento qualificado, a partir da identificação, localização e prisão de criminosos, além de medidas voltadas para a modernização do sistema de Segurança Pública.
Já o eixo de proteção social desenvolve ações nas áreas de Educação, Cultura, Direitos Humanos e de Ciência e Tecnologia, para ampliar o acesso a serviços básicos e promoção da cidadania, reduzindo a vulnerabilidade à violência, especialmente da juventude.
O agente da Polícia Federal e mestre em Segurança Pública Fabricio Sabaini também chama a atenção para o nível de escolaridade dos presidiários. Segundo ele, a maioria não tem ensino médio.
“Empiricamente vemos que, após certa idade, o adolescente é pressionado a gerar renda. E, não tendo qualificação, muitos não conseguem ser absorvidos pelo mercado de trabalho. Daí a renda da prática de crimes se apresenta de forma muito mais insinuante de que se houvesse pleno emprego”, analisa.
Na avaliação de Sabaini, é necessária uma abordagem mais incisiva na questão de geração de emprego e renda com a definição de programas que fomentem esse tipo de assistência de forma objetiva e transparente, como uma plataforma de Estado.
Fabricio Sabaini
agente da Polícia Federal e mestre em Segurança Pública
"Acredito que a presença das forças policiais no dia a dia das comunidades, como agente protetor ao invés de incursões periódicas, traria muito mais segurança na ocupação de espaços territoriais pelo Estado, evitando conflitos que a incursão nos traz. Não existe vácuo no poder. Onde o Estado não está, as organizações criminosas ocupam seu espaço. E disputam tal espaço entre si, gerando mortes"
O jurista e professor de Mestrado em Segurança Pública Henrique Herkenhoff reforça que investimentos em educação têm o poder de mudar a realidade dos jovens. “Para tirar a carga da criminalidade das costas das polícias, só vejo uma estratégia: escolas de turno integral em todo o ensino fundamental, com muito investimento em professores e equipamento”, sugere
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