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É jornalista e consultor de marketing político, especializado em imagem, gestão de crises e comportamento humano

A esquerda precisa encarar o divã e a extrema-direita, juntar os cacos

Se considerarmos que o presidente Lula é a maior referência da esquerda no país e que Bolsonaro é a grande personificação da oposição a esse governo, onde erraram, portanto, esses dois polos da política?

  • Fernando Carreiro É jornalista e consultor de marketing político, especializado em imagem, gestão de crises e comportamento humano
Publicado em 28/10/2024 às 13h18

O desempenho do PT nestas eleições foi aquém do que se esperava: fez apenas 252 prefeitos – nenhum deles no Espírito Santo. Em 2004, dois anos após Lula chegar para seu primeiro mandato na presidência, o partido foi o campeão de prefeituras, com 411. Quatro anos mais tarde, elegeu 547 chefes de governos municipais. Em 2012, novo recorde: 624 prefeitos eleitos.

Os números refletem o que não se pode negar: após a Operação Lava Jato, o Partido dos Trabalhadores desceu a ladeira e, a partir de 1º de janeiro, terá menos da metade dos prefeitos de 12 anos atrás. Esse panorama espelha o papel de coadjuvante de outros partidos do campo progressista pelo país.

Na trincheira da extrema-direita, o PL elegeu 519 prefeitos este ano. Das 52 cidades onde houve um segundo tempo eleitoral, o partido esteve em 22 delas, mas perdeu em 15. Dentro do vencedor PL, o grande perdedor foi o ex-presidente Jair Bolsonaro, cuja imagem sai desse processo eleitoral arranhada.

Em algumas cidades, o Partido Liberal venceu sem a presença de Bolsonaro em palanques; em outras que tiveram sua participação, saiu derrotado, como em Goiânia, onde venceu o candidato do governador Ronaldo Caiado, da direita, e virtual candidato a presidente da República daqui a dois anos.

No Espírito Santo, em todas as cidades onde Bolsonaro esteve, seus candidatos nem sequer chegaram ao segundo turno: Vila Velha, com coronel Ramalho; Serra, com Igor Elson; e Vitória, com Capitão Assumção.

O caso mais emblemático dessas ranhuras no espelho bolsonarista ocorreu em São Paulo. No primeiro turno, Bolsonaro se desplugou da candidatura do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e chegou a flertar com o extremista Pablo Marçal (PRTB).

Com a ajuda do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), Nunes passou para a próxima fase e liderou toda a disputa com ampla margem sobre seu adversário, Guilherme Boulos (Psol), que teve o mesmíssimo percentual de votos de quatro atrás, mesmo gastando mais de 10 vezes em recursos financeiros. Com a vitória no bolso, Nunes recebeu, a pedido, um Bolsonaro constrangido, que garantiu uma foto antecipada com o prefeito reeleito. Em seu discurso, Nunes exaltou Tarcísio e ignorou Bolsonaro.

Especialistas explicam desempenho dos partidos de Lula e Bolsonaro nas disputas para prefeito do ES
Especialistas explicam desempenho dos partidos de Lula e Bolsonaro nas disputas para prefeito do ES. Crédito: Divulgação/Arte: A Gazeta

Se considerarmos que o presidente do Brasil é a maior referência da esquerda no país e que Bolsonaro é a grande personificação da oposição a este governo, onde erraram, portanto, esses dois polos da política?

As eleições municipais caminham em uma estrada distinta da trilhada pelas questões nacionais. Pouco ou quase nada se viu das discussões ideológicas que costumam pautar os embates federais. O cidadão sabe bem que vive na cidade, e que é o prefeito a autoridade máxima capaz de transformar a realidade de seu cotidiano em áreas essenciais, com saúde, educação e assistência social. No entanto, as forças políticas nacionais sempre estiveram estampadas em todos os pleitos municipais desde a redemocratização — basta lembrar dos duelos entre PT e PSDB, nas esferas federal, estaduais e municipais. O que mudou, então?

O equívoco da esquerda brasileira na condução política não vem de agora. Esse espectro da política ainda não compreendeu – ou se recusa a perceber – o mundo moderno em que mesmo a base da pirâmide social não deseja mais depender do Estado. Isso explica o apelo eleitoral de Pablo Marçal e Ricardo Nunes, figuras de extrema-direita e centro-direita, em regiões periféricas e mais necessitadas da cidade de São Paulo, enquanto Guilherme Boulos, da esquerda que sempre representou esse segmento social, não conseguiu convencer eleitores com renda inferior a três salários-mínimos, apesar de todo o esforço feito no segundo turno.

São motoristas de aplicativos, taxistas, motoboys, boleiras, manicures, donos de barbearias e proprietários de mercadinhos de bairro que querem prosperar — verbo conjugado à exaustão nesta campanha eleitoral — e não mais depender de governos. São jovens da nova geração que se veem seduzidos pelo empreendedorismo e mulheres que querem medidas mais ostensivas (para não dizer truculentas) no combate à violência, em detrimento das políticas públicas de médio e longo prazos, defendidas pelos partidos de esquerda.

Esse conceito de “self-made man”, desenhado pela economia de mercado, é encontrado no bojo das denominações evangélicas. Em sua obra ‘Povo de Deus’, o antropólogo Juliano Spyer ilumina a tônica do discurso religioso que prega a prosperidade como caminho natural da fé. Essa é a razão pela qual grande parte do eleitorado evangélico tem, de uns anos para cá, se alinhado politicamente a candidatos mais à direita. Os sonhos da população mudaram, e a esquerda não modulou seu discurso.

Apesar de ter ficado atrás da expectativa interna de eleger 1.500 prefeitos no país, o PL foi um dos grandes vencedores desta eleição, mas expôs fraturas em Estados como Goiás; Santa Catarina, onde Ratinho Jr. apoiou um candidato e Bolsonaro, outro; no Rio, berço do bolsonarismo e onde a direita sequer chegou ao segundo turno; e em São Paulo, onde a grande vitória foi do governador Tarcísio, nome que também é tido como uma aposta para a Presidência da República em 2026. A direita bolsonarista sai desse processo eleitoral dividida. E ainda há Pablo Marçal, que promete ‘fazer o M’ novamente daqui a dois anos.

Pai dos exercícios retóricos, Michel Foucault ensinou que a sociedade faz uso abusivo do poder através de instituições, escolas e prisões. Para ele, a era moderna é definida através da disciplina, uma forma de domesticar o comportamento humano. Mais de quatro décadas atrás, o Partido dos Trabalhadores lançou mão de um processo de ocupação de espaços, até chegar à Presidência da República pela primeira vez.

Passou a catequizar a Igreja Católica e as comunidades eclesiais de base, produziu longas liturgias para estudantes de universidades e ocupou os sindicatos. Ao ocupar a República, o PT parece ter desembarcado do bonde para comemorar a ascensão da esquerda.

A direita, por sua vez, aproveitou o desembarque para seguir o caminho outrora traçado pelos seus algozes: investiu no público evangélico com o discurso da prosperidade, avançou sobre os pais de alunos com a pauta contra a sexualização nas escolas e tomou de assalto o coração dos empresários – dos pequenos aos grandes – com a mensagem da liberdade econômica.

Essa, a propósito, foi uma concepção do "Pai da Retórica Direitista", Olavo de Carvalho, que defendia a ocupação de espaços sociais como forma de fortalecer a musculatura política da direita.

Não há marqueteiro que faça mágica capaz de reparar equívocos históricos que devem ser tratados nos aspectos mais íntimos das estruturas partidárias. A esquerda vai precisar encarar o divã. Para Freud, pai da psicanálise, esse ato representa a entrega do paciente ao processo analítico, mesmo que de forma inconsciente. E à direita dividida cabe juntar seus cacos e reestruturar o espelho que refletirá a imagem do líder que deseja ter daqui para frente.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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