Começo falando um pouquinho da minha atuação, que desde o início se enveredou pela área da psicologia e da psicanálise clínica e hospitalar. Atuei em projeto de extensão na atuação clínica, fiz estágio em clínica na faculdade até surgir uma verdadeira paixão de desejo de trabalho: o hospital. Minha atuação hospitalar se deu a partir da minha experiência na UTI neonatal. Esse campo de atuação configura demandas bem particulares, exigindo do profissional um manejo do tripé: paciente, família e equipe, em um cenário ainda mais complexo do ponto de vista humano.
Lá lidamos com prematuros, bebês, crianças que ainda no início da vida precisam passar pela experiência dolorosa de uma internação na UTI. Nesse contexto, evidenciam-se dois extremos: vida, nascimento e morte, despedida. Uma vida que em muitos casos mal começou e que pelas circunstâncias têm seu fim.
Com a pandemia tive a oportunidade de atuação num hospital de referência em Covid-19. Diferentemente da UTI neonatal, num hospital de referência adulto os pacientes já puderam desfrutar minimamente da vida. Apesar disso, não podemos minimizar os efeitos dessas internações e desproblematizar os impactos do processo do adoecimento.
Dito isso, nesses dois contextos podemos evidenciar pontos de aproximação. Tanto na UTI neonatal quanto no hospital de especialidade adulto chegamos à mesma dicotomia e vivenciamos o mesmo tipo de ambivalência: vida e morte. A chegada ao mundo e a despedida dele.
"NÃO VAI PODER TER VELÓRIO?"
Atuando no hospital de referência, faz parte da rotina acompanhar a notícia de óbito de pacientes positivados por Covid-19. Quando o paciente vai a óbito frequentemente o que mais escuto é a seguinte pergunta: “Não vai poder ter velório?". A pergunta recorrente tem trazido à cena a importância do ato simbólico de "despedir- se", velar, sepultar o corpo como ritual de passagem, simbolizando um acontecimento real da morte.
Surge então a seguinte pergunta: como atuar nesse campo carregado de sinônimos tão díspares? Como produzir bons significados da morte? É possível alguma interlocução entre vida e morte? Como fica a questão da morte num cenário de pandemia, onde nos deparamos com a difícil situação da morte com um adicional: não se pode velar o corpo.
O coronavírus está levando a sociedade pós-moderna a repensar sua lógica de funcionamento, sobretudo dos rituais. O ritual (morte) assumiu uma nova perspectiva para sociedade e sobretudo para as famílias de pessoas diagnosticadas com Covid-19 que evoluem a óbito.
Quais são os efeitos dessa não elaboração? De um intervalo que ficou suspenso, sem contorno, sem tempo de ressignificação? Não temos uma resposta imediata para essa pergunta. Vemos os efeitos imediatos minimamente, pois não conseguimos acompanhar o desfecho de cada família que acompanhamos. Os efeitos posteriores com certeza vão aparecer, fazendo uma marca social.
ALTERNATIVAS DE INTERVENÇÃO
No geral, trabalhando na linha de frente da Covid-19, não temos muito tempo para pensar nos efeitos. O que fica é a busca de maneiras de intervir de forma efetiva diante de um cenário tão devastador. Como podemos intervir com as famílias para que possam minimamente viver a experiência de velar e/ou sepultar o corpo? O corpo que, é claro, é um corpo! Mas que teve alguma forma pela história individual de cada família. Existem dizeres, narrações, problematizações sobre esse corpo. Como criar possibilidades?
Vivi algumas experiências. Uma delas possibilitou alguns efeitos. Um casal que estava internado na UTI do hospital, ambos positivos para Covid-19. O senhor, que chamarei aqui de L., estava com quadro clínico mais grave com efeitos mais drásticos da doença. Ela, chamarei de M., estava melhor, clinicamente falando, fora do tubo, fazendo uso da máscara de alto fluxo NVI, evoluindo posteriormente para ar ambiente.
Com a pandemia, nosso trabalho ficou praticamente voltado para assistência ao óbito. Faz parte da rotina pela manhã conferir as mortes que ocorreram durante a madrugada e/ou pendências do dia anterior. Em um determinado dia, acolho a família desse casal para acompanhamento da notícia de óbito.
Durante o caminho, até chegarmos ao setor e ao médico responsável, ofertamos um acolhimento, uma escuta a fim de tentar ir preparando minimamente a família para a notícia que se seguirá. Durante esse processo, a filha me informou que a mãe, a Sra. M., estava internada no hospital um andar abaixo de seu pai, o Sr. L. Eles eram casados e pegaram a doença ao mesmo tempo.
A essa altura a família já tinha entendido que as notícias não seriam nada boas. Por fim, chegamos ao setor. O médico começa explicando qual era gravidade do quadro e quais foram as intercorrências, até por fim a informação oficial do óbito. Ao receber a notícia a família esboçou uma ambivalência do sentimento de perda do pai e da angústia de ter a mãe internada. Ela, ainda que com quadro mais ameno da doença, corria risco de vida, afinal ainda estava numa UTI.
Tento pensar de forma imediata em algumas intervenções. Uma delas foi primeiro escutar o posicionamento da família diante da situação. Existia um medo dessa notícia ser informada a mãe e ela piorar, ficando assim uma culpa da responsabilidade por essa piora. Por outro lado, existia um pedido dessa mãe: “Não me escondam nada. Qualquer coisa que acontecer eu desejo saber”.
Diante disso, a segunda intervenção era me dirigir até a médica responsável pela paciente para discutir um parecer clínico e a opinião sobre a direção de nossa conduta. Vale a pena ressaltar a importância de um trabalho interdisciplinar na direção do tratamento.
As justificativas médicas foram muito coerentes, pelo fato de estar numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI), M. estaria sob cuidados muito maiores, amparada por toda uma equipe qualificada, diferentemente de uma enfermaria ou em casa. Caso a notícia interferisse no prognóstico de saúde de M., ali ela estaria sob cuidados, inclusive de recursos para atendê-la.
A minha opinião foi na mesma direção, que a notícia fosse dada ali mesmo. Minha experiência clínica dava notícias bem ruins das tentativas de encobrimento da verdade. Isso poderia acarretar numa série de problema posteriores. Também sinalizei isso para a família.
FAMÍLIA TOMA DECISÃO
Era de fato uma situação bem difícil, pois ninguém sabia mensurar os efeitos de qualquer intervenção. Mas alguma decisão teria que ser tomada e, diante de tantas variáveis nos desfavorecendo, a família decidiu contar para M. A partir disso seguimos com mais uma intervenção. Sugeri uma visita humanizada dos filhos beira leito, para que juntos pudessem enfrentar essa situação tão difícil e tempestuosa.
Assim seguimos. M. reagiu com choro, claro! Afinal, estava perdendo o seu marido. Durante suas lágrimas, ela o descreveu como um companheiro de vida. Confesso que foi a experiência mais bonita que vivi durante toda minha jornada trabalhando no hospital. Teve choro, angústia, indignação, dor, perguntas, dúvidas... Mas também teve risos, ressignificação de lugares, simbolização da perda, vinculação de laços afetivos entre mãe e filhos, enfim, não consigo trazer em palavras essa experiência.
Após alguns minutos de uma enxurrada de emoções. M. me lançou a seguinte pergunta: “Não vou poder me despedir?”. Confesso que eu não tinha nenhuma resposta, embora soubesse que dentro de todas as impossibilidades, não, ela não poderia se despedir. Foi quando, numa espécie de luz, tamanho a velocidade do pensamento, me veio: “O que acha de fazermos uma videochamada do sepultamento?”. Ela respondeu: "Você faria isso por mim?". Diante de tanto mal-estar foi possível encontrar alguma possibilidade.
REALIZAÇÃO DA VIDEOCHAMADA
Minha intervenção teve efeitos sobretudo na equipe, com rumores. A morte ainda é um tabu, existem resistências e um pensamento místico da morte como algo triste, sombrio, não falado. Precisei de muita coragem para enfrentar essa situação, apostando sobretudo nos efeitos de um trabalho ético.
Realizamos a videochamada no horário marcado e mais uma vez fomos surpreendidos. M. fez daquele momento uma experiência única. Mostrou a sua família a importância de um relacionamento duradouro e da não infantilização dos seus afetos, mesmo estando fragilizada pela internação e pela notícia de uma perda tão significativa.
Durante a cerimônia, mostrou-me sua família, viu que apesar da quantidade reduzida de pessoas tinha amigos e vizinhos muito queridos, questionou a ausência de alguns, comentou das flores, reviu pessoas amadas, recebeu palavras de carinho da família, despediu-se.
Depois de alguns dias, encontrei M. na enfermaria com previsão de alta hospitalar. Relatou outras vivências, questionamentos, parte do seu processo de luto. Ainda pode de forma muito esplêndida fazer planos futuros, assumindo uma nova postura diante da vida e se responsabilizando pelo caminho que agora se seguirá.
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Em linhas gerais foi possível resgatar alguns elementos importantes da nossa cultura, adicionando um dispositivo “videochamada”, que proporcionou a vivência de uma experiência interessante diante de tantas condições desfavoráveis. As impossibilidades são reais e de forma alguma devemos desconsiderá-las. Todavia, cabe a cada caso uma análise e invenção de forma a valorizar o desejo de cada um como um possível objeto de nossa intervenção.
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