Em junho de 1919, era selado o Tratado de Versalhes. Uma ideia central em mente: responsabilizar os alemães pelos quatro anos de inferno e pelas 15 milhões de vidas perdidas. O documento agradou a pouquíssima gente, mas por motivos diversos; Woodrow Wilson, então presidente norte-americano, via com receio as pesadas perdas territoriais e sanções econômicas impostas a um povo já em frangalhos devido à guerra – no dito popular, “quem apanha não esquece”; já o marechal francês Ferdinand Foch, comandante das forças da Entente no front ocidental, apoquentado para eliminar as chances de outra guerra, esbravejou contra a “brandura” das medidas impostas – em sua visão, a Alemanha deveria perder a soberania sobre todas as terras a oeste do rio Reno.
Num acesso "nostradamusiano", previu um novo conflito em vinte anos; em junho de 1939, os nazistas bombardeavam Danzig e davam início à Segunda Guerra.
Quem, porém, deu o diagnóstico mais acurado foi Carl Schmitt, jurista alemão. Segundo ele, a ideia, reduzida ao Tratado, de “criminalização do agressor” e de rejeição da guerra teria como consequência não propriamente o desaparecimento da guerra, mas a atribuição, às potências vencedoras, da prerrogativa de decidir arbitrariamente a diferença entre aquilo que pode contar como guerra e agressão, por um lado, e aquilo que, por outro lado, não contará senão como uma “ação defensiva preventiva”.
Nomes como “paz”, “direito”, “justiça” e mesmo “humanidade” significariam agora não propriamente conceitos, mas nomes evocados pelos vencedores para os reivindicar para si mesmos e, por meio da sua apropriação, para se colocarem numa posição de superioridade moral em relação aos adversários derrotados.
Pois bem, hora de relacionar esse falatório ao título da coluna.
O inominável presidente do Brasil nos deu quatro anos que ficarão, para os livros de História, como os mais patéticos do nosso período republicano. Ninguém aguenta mais tanta fome, tanto subemprego, tanta barbaridade sendo dita em público, tanto desmando de pseudopastores de quinta categoria, tanta maracutaia dos filhotinhos mimados, tanta bestialização de um povo que já fora conhecido pelos bons modos, tanto desprezo (ou mesmo pena) das lideranças internacionais, tanto desmonte de setores econômicos estratégicos. Natural que o seu oponente mais cotado nas pesquisas, Lula, pregue a conveniência de acabar com a penúria o mais rápido possível. São legítimos os argumentos no sentido de liquidar a fatura no primeiro turno.
A coisa começa a esculhambar na absoluta falta de autocrítica, de propósito e de lógica da turminha do “voto útil”, que lançou, nas últimas semanas, uma artilharia poucas vezes vista contra o progressista Ciro Gomes. Até outro dia, ele e sua militância eram chamados de insignificantes e turma dos 8%; agora, parecem ser o voto de minerva entre civilização e barbárie. Não existe vida fora de Lula, mas Lula necessita das vidas alheias para se manter vivo – e quem, ao menos momentaneamente, negar-se a tal sacrifício é o antípoda das virtudes democráticas. Scott Fitzgerald escreveu “O curioso caso de Benjamin Button”, enquanto o cenário eleitoral brasileiro dá vida ao curioso caso do candidato que pretende ganhar de lavada, mas que tem medo do segundo turno.
Os lulopetistas são afamados pelos métodos pouco ortodoxos; quem não se lembra das insinuações, em pleno horário eleitoral, sobre uma possível homossexualidade de Gilberto Kassab? E da cena do prato de comida sendo retirado da mesa de uma família carente, em alusão à candidatura de Marina Silva?
Mas a atual investida se destaca. Cobram de Ciro Gomes e de seus eleitores algo a que se recusaram há pouquíssimo tempo, em 2018: renunciar a uma candidatura em prol da vitória “acachapante” sobre Bolsonaro. Afinal, Lula, dentro da cadeia, enfiou goela abaixo do campo progressista a inacreditável candidatura de Fernando Haddad (o “Andrade”, para os habitantes do Brasil profundo), justamente o único que, segundo as pesquisas, não derrotaria Bolsonaro num segundo turno – algo esperado de um sujeito que, dois anos antes, havia perdido já em primeiro turno a prefeitura de São Paulo, com 16% dos votos.
Como a culpa é deles e eles colocam em quem quiserem, criaram o factoide da “ida a Paris”. O tragicômico é que, além de Ciro ter retornado ao Brasil a tempo de votar em Haddad, a candidatura deste era tão fraca que não lograria êxito mesmo com 100% dos votos de Ciro, de Alckmin, de Marina e de Meirelles sendo transferidos.
Pior é a postura do “cale a boca e vote”, como se o bolsonarismo fosse um meteoro repentinamente caído sobre solo brasileiro, apto a desaparecer sem deixar resquícios se derrotado em primeiro turno, independentemente da pessoa e das ideias que se apoderarem do Planalto. A campanha de Lula foi toda nesse sentido: fuga de debates, vazio absoluto de projetos, resgate de antigos conchavos da pior espécie. Será que realmente todos os interesses devem ter lugar nessa “frente ampla”, mesmo os escusos e obscenos? Esta semana Lula gravou um vídeo em apoio ao cearense Eunício Oliveira, um dos arquitetos do impeachment de Dilma, dizendo que o então senador “sempre foi leal”. Bizarro. Em um momento espirituoso durante a campanha de 1989, Paulo Maluf disse a Brizola que ele “passou quinze anos no estrangeiro e não aprendeu nada... mas o pior: não esqueceu nada”; Lula realmente não aprendeu, tampouco esqueceu.
Enquanto Ciro, agora demonizado, adota há anos uma linha propositiva e estudiosa, de absoluta coerência e cuidado com os problemas do país, lulaplanistas exigem que ele largue tudo – sem qualquer contrapartida programática – e dê um cheque em branco a Lula (“já fiz uma vez, prometo fazer de novo!”). O bolsonarismo não é um meteoro repentino; é, na verdade, uma resposta peçonhenta e equivocada a práticas inaceitáveis dos governos petistas e tucanos. É disso que Ciro fala ao propor uma mudança radical no modelo de governança política, conciliando o nosso presidencialismo pluripartidário com práticas republicanas e lícitas. Duro dizer, mas, se o governo Lula for a bagunça que promete ser, as hordas voltam fortalecidas em 2026. Assim como Trump é o franco favorito para as eleições norte-americanas de 2024.
Enfim: o antídoto contra o bolsonarismo é voltar ao caos que o gerou, sem correção e contrição algumas? Jamais. A turminha do voto útil considera que a existência de Lula basta para se opor ao chiqueiro moral que atualmente experimentamos; por isso, emprega o mesmo terrorismo eleitoral personalista utilizado pelos bolsonaristas em 2018, crendo que o país colherá frutos diferentes. Insensatez e irracionalidade puras.
Não se preocupem, temos lado: estaremos aqui para tampar o nariz e votar, caso necessário. Mas não queiram que destampemos o nariz, muito menos que abandonemos o único projeto político progressista e desenvolvimentista existente no país.
Pedem que assinemos um Tratado de Versalhes, cuja garantia de paz é de somente quatro anos – quem dera se fossem os vinte que Ferdinand Foch previu. Triste fábula do voto útil, episódio candidatíssimo a integrar o rol de vexames da democracia brasileira.
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