Padre Kelder José Brandão Figueira*
Era uma noite tranquila de verão em São Pedro, em Vitória, dia 5 de fevereiro de 2017. A PM estava em greve no ES, mas o final de semana tinha sido tranquilo na região. Cheguei da Comunidade de Resistência e recebi uma mensagem sobre um tiroteio que teria acontecido, nas imediações onde morava, em Conquista.
Desci para me informar melhor sobre o que tinha acontecido e descobrira que aquela noite seria de horror e medo. A primeira noite do resto de minha vida e, por isso, se tornou assunto deste terceiro artigo, que compõe uma série, em que narro a descoberta de valores cristãos na relação com os traficantes.
Logo no portão da igreja estava um homem sentado. Ele relatou que um grupo armado havia subido o morro e tinha tido um tiroteio, o maior que ele já tinha escutado. Chegando à rua que dá acesso ao morro, encontrei moradores em pânico. Um grupo de homens vestidos de preto, usando toca ninja, com armamento pesado, havia executado dois jovens. Pedi que subissem comigo até onde os corpos estavam, pois não queria que ficassem jogados como lixo. Eles, com medo, negaram. Uma senhora evangélica que estava vindo do culto se prontificou a me acompanhar.
Padre Kelder José Brandão Figueira
Padre
"Ele se debruçou sobre o filho e chorou se culpando. Em seguida, pegou o sangue do filho, passou no rosto, cheirou, sentiu o gosto na língua e, chorando, chamava-o de volta"
Subimos a rampa que estava sem iluminação. Encontrei o primeiro corpo, o de Luciano, perto de uma grande pedra, embaixo da janela de um barraco. Estava desfigurado. Tinha levado mais de 30 tiros no rosto. Na janela da casa tinha uma criança em estado catatônico. Custei a perceber que era uma criança. Depois, o pai me informou que ele estava dormindo e acordou com os tiros, ficando naquele estado.
Mais acima encontrei o corpo de Vinícius, enviesado na escadaria. Quando o pai de Vinicius chegou, presenciei uma cena que jamais verei outra igual na vida. Ele se debruçou sobre o filho e chorou se culpando. Em seguida, pegou o sangue do filho, passou no rosto, cheirou, sentiu o gosto na língua e, chorando, chamava o filho de volta. Ao longe, ouvia o pranto da mãe, sendo consolada pelas vizinhas.
Fiquei ali, impotente, com aquele pai desesperado. Um jovem baleado passou sangrando, indo para a Policlínica. Tinha levado um tiro no ombro. Aos poucos, outras pessoas foram chegando, inclusive, muitos jovens armados. Foi a primeira vez que estive no meio de jovens armados. Fiquei com eles até conseguir a confirmação de que a Polícia Civil iria fazer ainda naquela noite a remoção.
Quando estava voltando para casa, encontrei com os familiares do Luciano. Seu pai estava com uma rede, queria remover o corpo, foi outra cena impactante. Naquela noite entendi o que é ser impotente e compreendi o sentimento de Deus quando seu Filho foi crucificado.
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*O autor é vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória
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