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É advogado, egresso da graduação e da especialização da FDV

A relativização do estupro dentro do casamento, uma realidade esquecida

O casamento não garante uma presunção de consentimento, de modo que não se deve admitir que a manifesta negativa da vítima para a prática de determinado ato sexual seja violada

  • Marcelo Paiva Santos Filho É advogado, egresso da graduação e da especialização da FDV
Publicado em 24/07/2024 às 15h22

18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi divulgado em 18 de julho, com diversos índices e estatísticas referentes ao cometimento de crimes no país.

A violência contra a mulher tem ganhado destaque nos últimos anos, e isso é motivado pelo alto número de casos em todo o país, ganhando visibilidade nacional na mídia e esforços legislativos cada vez mais evidentes para o seu combate.

Ao analisar os dados referentes ao ano de 2023, nota-se – além do crescimento de todas as modalidades de violência contra a mulher – um dado preocupante quanto à frequente existência de um vínculo entre vítima e autor nos casos de estupro no Brasil.

Os dados de 2023 indicam que, em cerca de 50% dos casos, há uma relação familiar entre vítima e autor. Outro aspecto que, embora alarmante, não recebe a devida atenção refere-se às vítimas maiores de 14 anos  em que, em 28% dos casos de estupro praticado por pessoas próximas, o autor do fato é o parceiro íntimo.

Importante destacar que essa estatística não engloba ex-parceiros das vítimas, que, segundo o estudo, representam cerca de 10% dos casos praticados por pessoas do círculo de convivência.

Isso ajuda a entender o porquê desse tipo de crime ocorrer principalmente em residências, representando mais de 61% dos casos de estupro.

Essa violência ainda é cercada de mitos e enfrenta certa resistência em diversos países, sendo necessários debate e estudos mais aprofundados sobre a sua caracterização, em especial a partir dos índices revelados na pesquisa.

O estupro praticado por cônjuge ou companheiro ganhou destaque neste ano após a plataforma de streaming “Netflix” divulgar um episódio do seu reality show “Casamento às Cegas”, em que uma participante relata que não manteve a união com outro participante após ele ter cometido atos que configurariam, em tese, a prática de importunação sexual (art. 215-A do Código Penal) ou até mesmo estupro, na modalidade simples (art. 213 do Código Penal) ou de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), a depender das circunstâncias particulares do fato.

Além disso, verifica-se que essa também tem sido uma preocupação legislativa, na medida em que está em tramitação o Projeto de Lei nº 3470/2023, que objetiva acrescer ao artigo 213 do Código Penal um novo parágrafo, nos seguintes termos:

§ 3º Nas mesmas penas incorre quem pratica as condutas descritas no caput em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação.

Nas justificativas para apresentar o referido projeto de lei, é destacada a determinação legal contida na Lei nº 11.340/06 (art. 5º, III e 7º, III), popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, em que a violência sexual é definida como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”.

Fato é que, independentemente de alteração legislativa nesse sentido, a relação sexual, para que seja lícita, deve ser consentida, de modo que o claro e manifesto dissenso da vítima sempre deve ser respeitado.

O casamento, assim, não garante uma presunção de consentimento, de modo que não se deve admitir que a manifesta negativa da vítima para a prática de determinado ato sexual seja violada.

Ainda vigora, socialmente, a equivocada ideia de inexistência de crime de estupro dentro do casamento, o que impediria o cônjuge de figurar como sujeito ativo da infração penal. Tal entendimento, todavia, é fundamentado em supostos deveres decorrentes da assinatura do “contrato de casamento”, entre eles a obrigação denominada “débito conjugal”, que se mostra anacrônica e ultrapassada.

A legislação brasileira passou por diversas reformas ao longo dos últimos anos (desde 2009), acompanhando modificações sociais e culturais, de modo que presumir a obrigação de uma pessoa de manter relação sexual com outra corresponde a um pensamento arcaico, retrógrado, que vai na contramão das evoluções legislativas e sociais.

Violência doméstica; violência contra a mulher
Violência doméstica. Crédito: Arte/Geraldo Neto

As mulheres, em especial, pelo triste histórico de invisibilidade da violência doméstica e familiar, têm sido cada vez mais lembradas pelo legislador, através da alteração e inserção de dispositivos protetivos que objetivam a defesa e o combate a todas as formas de violência de gênero.

A legislação penal é clara quanto à caracterização de diversos tipos de crime nos casos em que a relação sexual seja iniciada ou mantida a partir de meios que suprimam, ignorem ou burlem a vontade consciente da vítima, sendo vedada, por exemplo, a prática através de violência ou ameaça (art. 213 do Código Penal), mediante fraude ou meio que possa impedir a livre manifestação de vontade (art. 215 do Código Penal), ou, subsidiariamente, qualquer outro meio se não houver anuência da vítima (art. 215-A do Código Penal).

As relações são – ou deveriam ser - construídas sob a fundação do respeito e da confiança, sem que um dos cônjuges exerça domínio sobre o outro, tratando-o como se verdadeira propriedade fosse, impondo-se em busca de satisfação sempre que julgar conveniente.

Assim, o dissenso claro e manifesto da vítima para a prática de qualquer ato sexual jamais deve ser desrespeitado, sendo perfeitamente possível o cônjuge ou companheiro integrar o polo ativo de delitos de natureza sexual, visto que, na grande maioria das vezes, não é possível presumir o consentimento, pela simples existência do casamento entre as partes ou mesmo em outra forma de união entre pessoas.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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