Autor(a) Convidado(a)

A tuberculose e seus riscos em tempos de Covid-19

A tuberculose (TB) é uma doença grave, presente em todos os países, com indicadores epidemiológicos variáveis dependendo de aspectos geopolíticos e sócio-econômicos, sendo a principal causa de óbito por doença infecto-contagiosa no mundo

  • VALDÉRIO DETTONI
Publicado em 04/05/2020 às 19h31
Atualizado em 04/05/2020 às 19h37
  • Valdério do Valle Dettoni

    Médico pneumologista do ambulatório de referência estadual do programa de controle da tuberculose - Hucam
A tosse é um dos sintomas da Covid-19
A tosse é um dos sintomas da Covid-19. Crédito: Divulgação/Shutterstock

O enfrentamento à pandemia do COVID-19 tem absorvido parte expressiva da capacidade do sistema de saúde em todo o mundo, tanto na área técnica assistencial quanto na esfera gerencial, em detrimento da atenção às demandas de outros programas de saúde. As taxas de incidência e mortalidade diariamente crescentes em tempos de epidemia monopolizam as atenções, e deixam desfocadas as demais morbidades, sob risco de descontrole das mesmas em futuro próximo.

A tuberculose (TB) é uma doença grave, presente em todos os países, com indicadores epidemiológicos variáveis dependendo de aspectos geopolíticos e sócio-econômicos. É a principal causa de óbito por doença infecto-contagiosa no mundo: cerca de 10 milhões de casos em 2018 com 1,5 milhão de óbitos (letalidade de 15%), segundo dados da OMS. Estima-se que 25% da população mundial esteja infectada pelo bacilo da TB, totalizando quase dois bilhões de pessoas portadoras de tuberculose latente, milhões delas em risco de vir a adoecer e morrer por essa enfermidade nos próximos anos. Apesar dos números expressivos, e mesmo sendo reconhecida como prioridade pela OMS, a doença ainda é negligenciada em vários países. O acesso limitado ou inexistente a serviços de atenção à saúde, em locais de grandes populações em situação de pobreza, com todos os ingredientes que essa situação contém, são fatores que contribuem para a manutenção de altos índices de transmissão, e tornam desafiador o combate à doença. Apesar dos grandes avanços científicos obtidos nos últimos anos, a persistência dessas condições limita o sucesso das ações de controle.

No Brasil, o Programa de Controle da Tuberculose, foi o primeiro programa de saúde estruturado na forma de ações hierarquizadas, com a proposição de diretrizes técnicas e de políticas de saúde em âmbito federal (Programa Nacional de Controle da Tuberculose/PNCT/Ministério da Saúde), aplicadas sob o gerenciamento estadual (Secretaria de Saúde), com ações assistenciais em unidades sanitárias(USs) no nível municipal. Implementado no início do século XX, serviu de modelo para vários outros programas desenvolvidos posteriormente. Infelizmente, apesar da boa estrutura, permanecemos entre os 30 países com maior incidência no mundo, com uma taxa anual acima de 35 casos/100.000 habitantes. A redefinição de prioridades em diferentes governos ocasiona desestruturação de alguns serviços, falta repetida de alguns insumos para o diagnóstico e de alguns medicamentos para o tratamento que, felizmente, é exclusivo do SUS. No ES a desorganização de alguns serviços em nível municipal tem ocasionado queda no desempenho da atenção básica à tuberculose nos últimos anos, e que agora se agrava face à atenção prioritária à pandemia do COVID-19.

Portaria da SESA editada em 20 de março de 2020 não inclui a Tuberculose entre os programas essenciais a serem mantidos durante a pandemia; isso, de certa forma, desobriga os municípios de manterem o programa em funcionamento pleno, com todas as consequências nefastas que possam daí advir. Há risco de aumento no abandono do tratamento, aumento na taxa de resistência aos medicamentos, agravamento das lesões pulmonares e aumento na taxa de infecção e de morbi-mortalidade. Além disso, face aos riscos de geração de aerossóis contaminantes por COVID-19 durante a execução de exames de escarro nas USs, essenciais para o diagnóstico e controle da TB, a coordenação do PNCT determinou que tais exames sejam centralizados nos laboratórios públicos que disponham de condições adequadas de biossegurança. No ES existem dois laboratórios que atendem a essa exigência, o LACEN (Laboratório Central da SESA) e o Laboratório de Micobacteriologia do Núcleo de Doenças Infecciosas (NDI/UFES).

O LACEN foi obrigado a reduzir drasticamente a realização de exames para TB desde o dia 18 de abril deste ano devido a problemas nos equipamentos de refrigeração, hoje sanados após duas semanas de interrupção. Falta ainda a aquisição de um estabilizador e há risco de danificar outros equipamentos. A equipe se esforça para manter os exames em dia, uma empreitada difícil face ao aumento de demanda de exames dos municípios por força da norma do MS. Por sua vez, o trabalho no NDI vem sofrendo limitação devido à falta generalizada de EPI (máscaras N-95); o funcionamento é mantido com algumas restrições. O NDI atende gratuitamente à demanda de exames do HUCAM e de hospitais da rede privada, sem receber nenhuma ajuda financeira direta, nem da UFES, nem do governo, sendo mantido com verbas de pesquisas. A capacidade de colaboração com o LACEN está comprometida por falta de recursos. Uma minuta de convênio de cooperação mútua, proposta pelo NDI, tramita na SESA há cerca de dois anos, ainda sem desfecho previsto. Correspondência enviada pelo NDI à SESA em 20 de janeiro deste ano, solicitando informações sobre a decisão, permanece sem resposta. Da mesma forma, a oficialização do ambulatório do HUCAM como referência estadual para TB ainda não ocorreu. Há alguns anos esperamos essa oficialização mediante a formalização de convênio SESA/HUCAM, também em tramitação e sem desfecho previsível. Apesar de seus 26 anos de funcionamento, com desempenho que o coloca em destaque no plano nacional, o serviço está fragilizado, não temos garantia nenhuma da sua continuação.

A situação é preocupante, os serviços precisam ser mantidos, para isso as parcerias são indispensáveis. Precisamos de ações prontas e eficazes para o controle da TB, sem as quais poderemos assistir a uma importante piora no cenário da saúde no ES como efeito secundário da pandemia do COVID-19.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.