“Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.”
(Bertolt Brecht – "Aos que virão depois de nós")
Sempre lembro desse trecho do belo poema de Brecht quando busco remexer no baú da memória política do Brasil e do Espírito Santo, episódios da luta democrática do país e no Estado, que o tempo decorrido, não tão distante assim, parece tentar jogar na vala comum do esquecimento. E como diz um outro poema de Fernando Brant, "O que foi feito é preciso conhecer/Para melhor prosseguir".
Dois episódios ocorridos no Brasil e no Espírito Santo durante o mês de outubro do icônico 1968 completaram 55 anos mergulhados no esquecimento, como se não fosse importante lembrar deles, diante dos recentes ataques e ameaças que a democracia brasileira - tão duramente construída no país – sofreu e continua sofrendo, como mostraram as manifestações golpistas de 8 de janeiro, em Brasília.
No dia 12 de outubro de 1968, cerca de 900 estudantes, incluídos 13 do Espírito Santo, foram presos quando tentavam realizar, de forma clandestina, o XXX Congresso da UNE, num sítio na então pequena cidade de Ibiúna, em São Paulo. Entre os 13 capixabas presos, estavam o presidente do DCE/Ufes, César Ronald Pereira Gomes, a vice-presidente da UEE-ES, Jussara Lins Martins, o estudante da Faculdade de Medicina Iran Caetano, e a estudante da Escola de Serviço Social Marlene do Amaral Simonetti.
Apenas três dias depois, estudantes da Ufes realizavam uma manifestação para protestar contra a prisão dos colegas, em frente ao então prédio da Faculdade de Direito, na Cidade Alta, ao lado da Escadaria Bárbara Lindenberg, quando foram atacados por policiais militares e civis, sob o comando pessoal do secretário de Estado da Segurança Pública, o temido José Dias Lopes, irmão do então governador Christiano Dias Lopes Filho, cujo nome mais tarde seria associado à suposta ação do Esquadrão da Morte capixaba.
O confronto se espalhou pelo Centro de Vitória. Dias Lopes apontou e mandou os policiais prenderem o estudante da Faculdade de Medicina Júlio César Prates de Matos, e Ewerton Montenegro Guimarães, estudante de Direito e repórter do jornal O Debate, que haviam discursado na manifestação. O jornalista Paulo Eduardo Torre, estudante da Fafi – era diretor de redação do jornal A Gazeta quando faleceu, anos atrás –, que era namorado da irmã de Ewerton, tentou ajudar o amigo ao vê-lo sendo agredido pelos policiais, mas acabou também sendo derrubado e preso.
O próprio Dias Lopes tentou prender a estudante Zélia Malusa Stein e a agarrou pelos braços, já na região da Praça Costa Pereira, em frente à antiga Lojas Cannes, mas foi surpreendido pela reação da jovem estudante da Fafi, que desferiu um golpe da bolsa baiana que carregava na cara do temido secretário da Segurança Pública. Segundo o relato feito por Zélia, tanto ela quanto José Dias Lopes ficaram momentaneamente paralisados com sua atitude, mas a jovem estudante se recuperou mais rápido e aproveitou para escapar, indo se esconder na então isolada região da Praia de Camburi.
Dias depois, deixou clandestinamente Vitória, levando algumas poucas peças de roupa, dizendo para a mãe que não se preocupasse, pois voltaria em algumas semanas. Mas quis o destino que retornasse somente 11 anos depois, após ter passado da clandestinidade no Brasil para o exílio no Uruguai, onde chegou a ser presa duas vezes e torturada e, posteriormente, partir para um novo exílio no México.
Também foram presos na manifestação a estudante Ana Olívia Sanchez Vargas e o secundarista Rubens Manoel Câmara Gomes, repórter do jornal O Diário. Os dois últimos e Paulo Torre foram libertados horas depois. Ewerton Guimarães e Júlio César, mais conhecido como Julinho, não tiveram a mesma sorte. Depois de levados para a Superintendência da Polícia Federal (PF), que na época ficava na Avenida Vitória, em Jucutuquara, foram transferidos para o quartel do então 3º Batalhão dos Caçadores (3º BC) – atual 38º Batalhão de Infantaria – e, inacreditavelmente, foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN).
Dois dias depois, sem qualquer aviso aos seus familiares, Ewerton e Julinho foram levados dentro do cofre de uma viatura da Polícia Federal (PF) para a cidade de Juiz de Fora/MG. Mas chegando lá, por um problema de jurisdição militar, foram transportados pela mesma viatura para o Rio de Janeiro, onde ficaram presos numa cela do DOPS/RJ. No dia 28 de outubro foram libertados, já que o juiz-auditor (togado) da 1ª Auditoria Militar da Aeronáutica não aceitou a denúncia feita contra eles pelo Ministério Público Militar (MPM).
Mas aqueles eram tempos do autoritarismo e arbítrio de uma ditadura. Pouco tempo depois, no dia 13 de dezembro de 1968, os militares escancararam de vez o caráter ditatorial do regime, com a decretação do AI-5 (Ato Institucional nº 5). Mas para dar um ar de “legalidade” ao arbítrio, a denúncia contra os dois estudantes foi aceita depois de um recurso do MPM ao STM (Superior Tribunal Militar). Em janeiro de 1970, os dois foram julgados e condenados a seis meses de prisão, saindo da auditoria militar já presos para cumprir a pena na Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
Passados 55 anos, os principais protagonistas desses eventos, Ewerton Montenegro Guimarães, Júlio César Prates Matos, Zélia Malusa Stein e Paulo Eduardo Torre não estão mais entre nós, pois todos eles já são falecidos, mas a memória dos seus nomes não pode e não deve ser esquecida jamais.
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