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Adnet na Boa Vista: o carnaval capixaba e as Superescolas de Samba S.A

Contratação do humorista, divulgada em rede nacional, segue tendência no Carnaval de Vitória de importar compositores, coreógrafos, carnavalescos, intérpretes e casais de mestre-sala e porta-bandeira. O que isso significa?

  • Marcos Ramos É professor e escritor
Publicado em 15/08/2022 às 16h33

Em 1982, o Império Serrano levou para avenida um samba que entrou definitivamente para o cânone do gênero. A ideia do enredo pensado por Fernando Pamplona, carnavalesco da agremiação, nasceu de uma entrevista de Ismael Silva. No esforço de ilustrar a diferença entre o samba feito na casa da Tia Ciata e o samba do Estácio, Ismael explicou ao entrevistador que o samba maxixado de Donga e João da Baiana fazia tan tantan, tan, tantan; o samba do Estácio, por sua vez, era mais cadenciado e fazia um tal de bum bum paticumbum prugurundum. O resto da história todos sabem. No dia 21 de fevereiro de 1982, o Império levantou a Marquês de Sapucaí com um memorável samba assinado por Beto Sem Braço e Aluízio Machado.

O samba metalinguístico assinado pela dupla fazia uma crítica contundente aos caminhos que o carnaval estava tomando na virada dos anos 70 para os anos 80. Em dado momento, ouvimos na música os versos: "Super Escolas de Samba SA / Super-alegorias / Escondendo gente bamba / Que covardia".

A escola entrava na avenida denunciando um novo modelo de festa que se impunha. Um modelo que privilegiava o modo de produção industrial, fabril, midiático, ao passo que escondia gente bamba – ou seja, aqueles que levantavam o desfile no dia a dia das comunidades.

O problema não era exatamente novo, apesar de ter tomado ares muito mais virulentos nos anos 80. Alguns anos antes, já diagnosticando o problema que viria a se avolumar nos anos seguintes, a madrinha Beth Carvalho cantou em alto e bom samba que "Depois que o visual virou quesito / Na concepção desses sambeiros / O samba perdeu a sua pujança / Ao curvar-se à circunstância / Imposta pelo dinheiro". E mais a frente, completou com crítica e graça: "O samba agora é luxo importado/ Organdi, alta costura / Com luxuosos bordados".

Desculpem a insistência, mas como a questão é pretérita, pululam referências que de tão lindas não podemos deixar de citar: Em 73, em Avenida Fechada, o saudoso Elton Medeiros também pressentindo o tamanho do calo, cantou: "Não me leve a mal / Mas muito luxo pode atrapalhar / Alegria ninguém pode fabricar / Um bom carnaval / Se faz com gente feliz a cantar / Pelas ruas um samba bem popular". E claro, entre os tantos modos de resistência às Superescolas de Samba S.A, talvez o esforço mais radical e contundente tenha sido a criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, em 1975.

Há um senso mais ou menos comum de que o carnaval é um momento de suspensão da ordem social – ou seja: nessa concepção, a festa do Momo seria uma espécie de bolha no espaço e no tempo de interdição dos papeis políticos e, inclusive, de supressão dos distanciamentos socioeconômicos.

Essa compreensão mais amplamente compartilhada do carnaval tem seus fundamentos e, portanto, não é um completo equívoco, mas certamente exclui o que há de mais potente. E se, para alguns, os sambas citados no início deste modesto artigo soam como nostalgia ou preciosismo, é preciso sublinhar com tintas fortes que o problema é outro. E o buraco é muito mais embaixo. O que todos esses sambas têm em comum é um posicionamento radical que se contrapõe aos esforços burgueses de esvaziamento de um complexo modelo negro de fazer política.

O carnaval não se esgota na festa, ele é um modelo de fazer política que está diametralmente oposto às concepções coloniais e colonizadoras. E é sintomático: nossa herança colonial distancia de tal modo política e festa que quando essas dimensões foram aproximadas cunhou-se um termo depreciativo para esvaziar sua dinâmica de proposição - "esquerda festiva".

Mas em oposição ao modelo burguês que vê o carnaval apenas como uma festa, a dimensão negra que estruturou o que chamamos de carnaval brasileiro, no século XX, é a proposição de uma dinâmica distinta que tem como fundamento o paradigma de ocupação territorial. Em outras palavras, a festa do Momo com que tanto vibramos é o motivo de algo muito mais profundo e enraizado: o aprofundamento da relação territorial e a organização comunitária.

Quando esfregamos os olhos e desembaçamos as formulações reducionistas burguesas que obnubilam a vista, enxergamos as Escolas de Samba como espaços de reestabelecimento de laços familiares de comunidades que dão manutenção à tradição da invenção. O termo pode soar paradoxal (tradição da invenção), mas é exatamente isso.

A dimensão política que não devemos perder de vista está sobretudo na vocação que as instituições chamadas Escolas de Samba têm de inventar. Em outras palavras, o que está em jogo quando falamos em "tradição" não é a busca por raízes originárias, mas a retomada de uma propriedade inventiva que está na seiva comunitária, e o melhor exemplo é o próprio samba do Estácio já citado.

No último sábado, uma agremiação capixaba comemorou a contratação do ator e compositor Marcelo Adnet para elaboração do samba enredo que entrará na avenida no próximo ano. A contratação foi divulgada, a propósito em rede nacional durante um prestigiado programa de televisão.

Quem acompanha o carnaval capixaba sabe que essa tem sido uma tendência no Grupo Especial e que em pouco tempo chegará aos Grupos A e B. Ano após ano, são contratados compositores, coreógrafos, carnavalescos, intérpretes, casais de mestre-sala e porta-bandeira... porque, como cantou a madrinha, "O samba agora é luxo importado".

Rendendo-se a uma compreensão muito limitada e limitante do que pode ser o carnaval capixaba, crescemos como enxertos adubados safra a safra com os mais potentes fertilizantes sintéticos. Há um pacto implícito aqui: se por um lado cresceremos tão depressa quanto os frangos de granja, o ônus parece ser o progressivo desquite entre as escolas e as suas comunidades.

Em última instância, o que está em jogo é a escolha entre abrir mão da dimensão política que funda e refunda sua singularidade a partir das demandas locais e dos esforços de formação comunitária ou entender a potência desses espaços e assumir o carnaval como uma possibilidade de aprofundar relações entre as escolas de samba e seus territórios.

Os sambas de Beto Sem Braço e Aluízio Machado, Beth Carvalho e Elton Medeiros acendem uma luz vermelha: as escolas de samba não são meras instituições de promoção do desfile de carnaval. A organização do desfile é estruturante em todo território que circunscreve o barracão. E é preciso recobrar esse sentido oferecendo formação, em seguida, protagonismo, mesmo que para isso seja necessário a refundação do quilombo – como fez Candeia.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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