Recentemente deparei uma situação interessante, senão intrigante. Uma amiga compartilhou que em sua atividade laborativa, no âmbito do Ministério Público, um determinado município, sob a égide da vigência de uma regulação específica prevista no Plano Diretor do Município, teria emitido uma certidão de viabilidade em relação ao uso e ocupação do solo.
Na ocasião, o empreendedor ainda não contava com a respectiva licença ambiental para o empreendimento, ainda que contasse com uma licença prévia, instrumento jurídico que sinaliza que, do ponto de vista de sua concepção, a atividade não encontra óbice, mas não com uma licença de operação.
Passados alguns anos desde a emissão da licença prévia até a emissão da licença de operação, interstício durante o qual a regulação do uso e ocupação do solo sofreu diversas alterações, mais restritivas, surgiu o dilema: o empreendimento podia aproveitar a certidão de viabilidade do solo anteriormente emitida, ainda que apenas sob a época da emissão da licença prévia? Haveria um direito adquirido em relação à certidão, ainda que nesse interregno o a cidade e a coletividade tivessem pactuado um novo uso e ocupação do solo municipal?
Talvez a questão possa parecer simples se olhada apenas do ponto de vista do que estamos acostumados a olhar, ou seja, o valor que se confere às questões econômicas. No entanto, o que está em jogo vai bem mais além. Diz respeito às capacidades de resiliência, prevenção e precaução de desastres, situações que ensejarão processos de desterritorialização e reterritorialização do corpo social correspondente.
Os frequentes desastres ambientais, as mudanças climáticas, a elevação dos níveis dos oceanos têm trazido reflexões em torno da capacidade de resiliência das cidades. Mas a resiliência não está proposta apenas do ponto de vista da capacidade de resposta aos desastres quando tenham ocorrido, mas também em relação a uma atitude preventiva e precaucional em relação a esses processos.
Na maior parte das vezes, os desastres ocasionam processos de desterritorialização social significativos, com grandes repercussões e agravamentos em relação ao direito de moradia, direito de acesso à terra urbanizada, mobilidade urbana, saneamento ambiental, entre outros. Nesse cenário, a afirmação de que uma certidão de viabilidade de uso e ocupação do solo possa valer-se, seja pelo tempo que for, ainda que a cidade tenha se posicionado de modo contrário, consiste em afirmar mais uma vez que o interesse econômico particular possa sobrepujar-se aos inúmeros interesses sociais envolvidos na repactuação prevista no Plano Diretor do Município e nos demais instrumentos normativos de regulação do uso do território.
A certidão de viabilidade do uso e ocupação do solo não é uma autorização que configure um direito adquirido do empreendedor, mas sim, uma autorização de natureza precária cuja permanência de autoridade está condicionada à manutenção dos estudos técnicos que um dia justificaram a sua emissão. Quando situações técnicas e fáticas ensejam a alteração do estado das coisas, especialmente diante da dinâmica ambiental e urbanística, sua precariedade cede espaço a interesses sociais que devem prevalecer.
Ou a sociedade deve se desterritorializar em nome da territorialização do capital?
As autoras são, respectivamente, coordenadora do PPGD da Faculdade de Direito de Vitória e promotora de Justiça, doutoranda pela Faculdade de Direito de Vitória
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