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É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL)

“Ainda estou aqui”, digno ou não de Oscar, é um filme que nos dignifica

No filme, somos nós a expelir em catarse represada as lágrimas de angústia, medo e saudade de Eunice, a preencher os seus silêncios e lacunas, a percorrer a via crucis da história de sua família e a penetrar na história anistiada do Brasil

  • Pedro Sampaio Minassa É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL)
Publicado em 13/11/2024 às 15h27

Ainda estou aqui” é um filme que nos intima a olhar, de dentro, as feridas abertas pelo autoritarismo agenciado e praticado pelo Estado brasileiro no século passado. Para além de interpretação, fotografia e roteiro impecáveis, o já internacionalmente aclamado longa-metragem nos coloca no ritmo da respiração da protagonista, Eunice Paiva (Fernanda Torres), nos faz chorar por ela e por meio dela e nos permite abrir as comportas lacrimais que a personagem resiste tanto em abrir, para não demonstrar qualquer sombra de fraqueza a seus algozes.

Em cartaz desde o último dia 7, o filme que já passou - e ainda passará - por vários festivais na Europa e na América do Norte, chega ao Brasil  60 anos depois do golpe militar de 1964. O cenário de fundo é a brutalidade e o arbítrio do regime cívico-militar que afundou o país numa das épocas mais obscuras de sua história, mas, em primeiro plano, temos a rotina da família Paiva. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva (filho de Rubens), a película apresenta como o dia a dia tranquilo e feliz da família do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), casado com Eunice Paiva, é abruptamente castrado pelo regime.

Diante do vazio deixado pelo marido, Eunice corporifica uma fortaleza inabalável para resguardar a incolumidade física e psíquica de seus cinco filhos. Contendo-se para não se afogar em um vale de lágrimas, justificado pela espera incessante de respostas quanto ao paradeiro de Rubens, a mulher se reinventa, assume o poder familiar e protagoniza uma das mais nobres histórias de vida, mesmo diante das agruras dos anos de chumbo.

Fernanda Torres em cena de 'Ainda Estou Aqui'
Fernanda Torres em cena de 'Ainda Estou Aqui'. Crédito: Divulgação

Inconformada com o apagamento da memória familiar e obstinada em dignificar a vida de Rubens, Eunice faz questão de documentar toda a história de seu marido até o seu desaparecimento e, assim, através disso, consegue documentar também a história de todo um povo dilacerado, que chorou e sonhou com “a volta do irmão do Henfil e de tanta gente que partiu”.

Walter Salles, diretor deste e de outros clássicos do cinema nacional, consegue imprimir um ritmo nervoso e angustiante à história, faz os malfeitores da ditadura entrarem pelas portas do cinema como se ali estivéssemos na mesa de jantar da família Paiva. Salles orquestra uma cadência impressionante de não-dizeres e leva o público a respirar pelos poros da protagonista.

No filme, somos nós a expelir em catarse represada as lágrimas de angústia, medo e saudade de Eunice, a preencher os seus silêncios e lacunas, a percorrer a via crucis da história de sua família e a penetrar na história anistiada do Brasil.

Sem dúvida alguma, é um filme que deveria abarrotar as salas de cinema de um país que, lamentavelmente, vive sob a égide da anistia dada aos golpistas de ontem e que, por isso mesmo, ainda cogita voltar a concedê-la aos golpistas de amanhã. Um país que derrubou a única presidente que, sendo igualmente vítima da máquina de tortura do Estado, teve a coragem de trazer a Verdade à tona em Comissão.

Eunice Paiva, uma mulher muito real, e que Torres faz roçar a realidade de novo nas telonas, é a imagem contida, mas muito resistente de um Brasil possível, esperançoso e sedento por reparação. Sendo ou não um filme digno de conquistar um Oscar, certamente é uma obra-prima do nosso cinema, que se não é capaz de reparar totalmente o passado, ao menos nos dignifica um pouco a todos nós.

Em tempos de escalada de nacionalismos autoritários torpes por todo o mundo, assistir a “Ainda estou aqui” é um ato eminentemente político — de consciência e resistência!

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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