“Ainda estou aqui” é um filme que nos intima a olhar, de dentro, as feridas abertas pelo autoritarismo agenciado e praticado pelo Estado brasileiro no século passado. Para além de interpretação, fotografia e roteiro impecáveis, o já internacionalmente aclamado longa-metragem nos coloca no ritmo da respiração da protagonista, Eunice Paiva (Fernanda Torres), nos faz chorar por ela e por meio dela e nos permite abrir as comportas lacrimais que a personagem resiste tanto em abrir, para não demonstrar qualquer sombra de fraqueza a seus algozes.
Em cartaz desde o último dia 7, o filme que já passou - e ainda passará - por vários festivais na Europa e na América do Norte, chega ao Brasil 60 anos depois do golpe militar de 1964. O cenário de fundo é a brutalidade e o arbítrio do regime cívico-militar que afundou o país numa das épocas mais obscuras de sua história, mas, em primeiro plano, temos a rotina da família Paiva. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva (filho de Rubens), a película apresenta como o dia a dia tranquilo e feliz da família do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), casado com Eunice Paiva, é abruptamente castrado pelo regime.
Diante do vazio deixado pelo marido, Eunice corporifica uma fortaleza inabalável para resguardar a incolumidade física e psíquica de seus cinco filhos. Contendo-se para não se afogar em um vale de lágrimas, justificado pela espera incessante de respostas quanto ao paradeiro de Rubens, a mulher se reinventa, assume o poder familiar e protagoniza uma das mais nobres histórias de vida, mesmo diante das agruras dos anos de chumbo.
Inconformada com o apagamento da memória familiar e obstinada em dignificar a vida de Rubens, Eunice faz questão de documentar toda a história de seu marido até o seu desaparecimento e, assim, através disso, consegue documentar também a história de todo um povo dilacerado, que chorou e sonhou com “a volta do irmão do Henfil e de tanta gente que partiu”.
Walter Salles, diretor deste e de outros clássicos do cinema nacional, consegue imprimir um ritmo nervoso e angustiante à história, faz os malfeitores da ditadura entrarem pelas portas do cinema como se ali estivéssemos na mesa de jantar da família Paiva. Salles orquestra uma cadência impressionante de não-dizeres e leva o público a respirar pelos poros da protagonista.
No filme, somos nós a expelir em catarse represada as lágrimas de angústia, medo e saudade de Eunice, a preencher os seus silêncios e lacunas, a percorrer a via crucis da história de sua família e a penetrar na história anistiada do Brasil.
Sem dúvida alguma, é um filme que deveria abarrotar as salas de cinema de um país que, lamentavelmente, vive sob a égide da anistia dada aos golpistas de ontem e que, por isso mesmo, ainda cogita voltar a concedê-la aos golpistas de amanhã. Um país que derrubou a única presidente que, sendo igualmente vítima da máquina de tortura do Estado, teve a coragem de trazer a Verdade à tona em Comissão.
Eunice Paiva, uma mulher muito real, e que Torres faz roçar a realidade de novo nas telonas, é a imagem contida, mas muito resistente de um Brasil possível, esperançoso e sedento por reparação. Sendo ou não um filme digno de conquistar um Oscar, certamente é uma obra-prima do nosso cinema, que se não é capaz de reparar totalmente o passado, ao menos nos dignifica um pouco a todos nós.
Em tempos de escalada de nacionalismos autoritários torpes por todo o mundo, assistir a “Ainda estou aqui” é um ato eminentemente político — de consciência e resistência!
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